A
novela Amor de Mãe, que ontem se findou, será marcada pelo atravessamento
surreal da pandemia em nossas vidas e seus desdobramentos na ficção. Iniciada no
final de novembro de 2019, foi interrompida em março de 2020, retomada um ano
depois para ser concluída da forma mais breve possível em razão das circunstâncias
impostas para sua gravação e que consagra Manuela Dias, sua jovem autora, no time
de ouro das nossas novelistas na esteira de Janete Clair, Glória Perez e cia.
A novela é uma obra aberta e vai sendo feita
ao sabor de diversas variáveis. Os autores sabem como começam seus primeiros
capítulos, mas só têm uma vaga ideia de como terminará. Nessas variáveis entram,
por exemplo, a aceitação do público que faz uma subtrama crescer ou minguar,
uma personagem secundária se destacar ou as próprias intempéries da vida, como a
doença ou morte de um ator, mudar o rumo, mas com a variável pandemia, ninguém,
nem na arte, nem na vida, podia prever. E foi esse o desafio que se apresentou e
que atravessou a novela das 21h, das 9h que já foi das 8h, a mais vista e desejada da nossa TV. E aguardamos
um ano para ter o desfecho do mote principal, o reencontro de Lurdes com Domênico,
seu filho vendido aos dois anos de idade. Fato central que fazia com que as
outras duas protagonistas, Telma e Vitória, orbitassem ao seu redor até que suas
histórias se cruzassem.
A
grande cena do encontro de Lurdes com Domênico/Danilo já nasceu antológica, certamente
entrará para a galeria da nossa teledramaturgia como uma das mais belas e emocionantes.
O momento tão esperado foi marcado por diversos símbolos potentes, desde o
altar possível construído por Lurdes para continuar rezando por seus filhos, à
revelação da Graça da saída do cativeiro pela Pomba, formando uma trindade nova
Mãe, Filho e Espirito Santo.
O
encontro na estrada merece nossa atenção especial, a mãe que buscou o filho por
27 anos é que foi encontrada por ele. Sem saber quem estava procurando, o filho
achou aquela que já estava velando por ele. A estrada empoeirada, semelhante ao
espaço onde toda a busca começou, volta à cena, acrescida de trilhos
abandonados, uma metáfora do curso de uma vida que foi interrompido e, no
momento magistral do abraço e do reconhecimento através do cheiro na cabeça do
filho, a mesma estrada deu ré para recuperar o tempo do amor perdido. Além dos símbolos,
a interpretação dos atores foi visceral, Lurdes/Regina Casé tornou-se, nesse
momento de desalento que vivemos, uma espécie de mãe arquetípica de todos nós (“Sua
mãe está aqui” seu brado retumbante). Já Domênico/Chay Sued honrou toda a espera e a angustiada sequência
da procura com a maestria de um grande ator que fala através dos olhares, dos silêncios,
dos soluços e do texto forte (Onde estava Deus?) que brotava de sua voz rouca, típica
das emoções que nos atravessam a alma. E a música Onde estará o meu amor?,
de Chico Cezar cantada por Maria Bethânia, coroou o momento ( A noite findou e o sol rebrilhou sobre eles).
Daí
em diante a alegria dos reencontros com os filhos/irmãos, naquela grande família
cheia de problemas, mas unida nas horas boas e ruins. Ao chegar no quintal da
casa de sua nova mãe, o filho reencontrado e tentando matar Telma dentro dele,
pergunta para Lurdes sobre o ninho do passarinho, outra imagem do aconchego que
teria naquela casa e sobre o que fazer com aquele sentimento que lhe esmagava o
peito. Dentre uma das falas de Lurdes nesse reencontro ela disse: “O tempo é
rei, o tempo cura tudo, não existe família perfeita, existe família unida”. Aliás, as frases sábias de Lurdes mereciam um compêndio, filosofia condensada dessa mãe
tão brasileira que nos faz rir e chorar!
Ainda
vale destacar outras simbologias interessantes nessa retomada da trama. A psicopatia
revelada em Telma foi acompanhada das imagens internas de sua casa, corredores,
portas, gavetas, pastas, papeis guardados, que aludem aos seus labirintos
internos. Adriana Esteves brilha em qualquer personagem na comédia ou no drama
ela reina soberana.
A morte de Álvaro, o gigante Irandhir Santos,
de tão boa atuação que a gente ainda sente empatia por ele, como ele mesmo
disse "sem arqui-inimigo não tem herói", também foi rica em imagens. Se arrastou
até a cadeira da presidência, marca de sua ambição, e morreu porque foi buscar
mais dinheiro que como já fora dito era o móvel de sua vida, poço de seus
vícios e no amor por Verena sua única virtude. Ele era a marca da corrupção
predadora na trama. Sua construção nos remete à máfia italiana com seus ternos elegantes
e gostos refinados, inclusive sua trilha sonora é a ópera Mio Babbino Caro
de Puccini. Através dele, tivemos Davi, o quixotesco ativista ambiental, que
teve um belo fim, discursando na ONU, gotas de esperança que a ficção nos dá.
Pela
própria economia narrativa e penso que pela necessidade de tratar de diversos
temas em pouco tempo, houve algumas passagens que julgo desnecessárias, mal
resolvidas ou que traíram a verossimilhança buscada. A luta corporal e o discurso de Vitória com o
agressor da esposa no meio do mato, a morte de Lucas, a saída dos pacientes da
UTI em aparência tão saudável, a inserção da mãe biológica de Tiago, mas paro
aqui, porque os acertos foram bem maiores e não abalaram em nada o brilho do
final.
Sem esquecer de personagens que cresceram muito e se modificaram durante a trama como Penha e Leilinha Pé na cova Gratiluz que foram se destacando até formar o casal de contraventoras simpáticas que acabamos perdoando ou Lídia, que encontrou no verdadeiro amor por um homem simples, uma razão para recomeçar sem perder o charme o esnobismo dos herdeiros. Aliás, Magno merecia a menção honrosa Amor de Pai, de filho e de irmão. Sandro, outro exemplo de força interpretativa e caráter ambíguo, oscilando entre seus dois mundos, opta pelo segundo, sem deixar para trás os amigos antigos.
O
final... As três protagonistas juntas no leito de morte de Telma, discutindo
suas culpas e seus perdões e a consciência da mão do destino que age
impiedosamente sobre nós surgiu em diversos diálogos (se Domênico não fosse vendido,
não existiria Camila, se Sandro não fosse o primeiro a ser vendido... E aí por diante na estrada sinuosa da vida). E o
perdão de Danilo que foi ministrar a extrema-unção, o perdão para que Telma pudesse
partir. Como em sua fala que bom seria se as mães não errassem nunca e fossem perfeitas,
mas como isso não é possível, ficamos com Lurdes marcando os copos com esmalte
para seus filhos e todos juntos se sacaneando com todo respeito, como ocorre
nos encontros das famílias imperfeitas e que se amam...
Teria
muito mais a dizer tão grande era o meu desejo de voltar às Entretelas em um
ano que só tivemos reprises em meio à barbárie lá fora. Não posso terminar sem
falar do discurso esperançoso de Camila, Jéssica Ellen excelente em seu
carrossel de emoções e provas, se Lurdes é nossa Mãe arquetípica, ela é a nossa
Professora arquetípica. A que luta todos os dias por uma educação melhor e crê
no seu poder de transformação mesmo em contextos tão adversos... Sim! A ficção
também pode nos ensinar muita coisa e nos salvar por alguns momentos da
brutalidade do cotidiano... Pena que foi tão rápido, mas o suficiente para ser inesquecível.
E, assim como na novela, terminemos com Guimarães Rosa, pela boca do nosso
Riobaldo, porque a vida é travessia e exige da gente coragem:
O correr
da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus
quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da
alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na
horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes
achava. Ao clarear do dia.
Sigamos
segunda-feira com Império. Na falta do novo, redescobriremos a magia do já visto...