Quem
estava saudoso por uma nova trama no horário nobre começou a matar sua sede
essa semana. E com aquele gole refrescante que estávamos precisando depois de
longa abstinência. A novela Um lugar ao sol,
de Lícia Manzo com direção refinada de Mauricio
Farias, chegou dizendo a que veio e a autora ocupa muito bem o seu lugar ao sol
na faixa das 21h.
Centrada
no tema do duplo, tão caro na nossa tradição literária, temos os gêmeos Christian
e Christopher, depois Christian e Renato, vividos por Cauã, que já nos brindou
com outros gêmeos em Dois irmãos. Aliás, a nossa teleficção é repleta de exemplos
gemelares de sucesso: Quinzinho e João Victor, Rute e Raquel, Tais e Paula,
Jorge e Miguel dentre outros. Irmãos fisicamente idênticos, mas sempre marcados
pela oposição de perfis psicológicos, advinda da matriz bíblica de Esaú e Jacó.
Matriz já evocada na trama através do livro de Machado de Assis, alvo de uma
cena entre Cristian agora Renato e seu sogro que contou a história da
rivalidade de Pedro e Paulo presente no romance machadiano.
A
citação lida pelo sogro (uma menção a Aires talvez) representa o dilema vivido
pelo gêmeo sobrevivente: - “Não é a ocasião que faz o ladrão, dizia ele a
alguém; o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: A ocasião faz o
furto; o ladrão nasce feito". Christian, preterido e abandonado à sorte no
berço quando seu irmão foi o escolhido para ser adotado por um casal rico,
viveu uma vida de privações num abrigo onde nunca foi escolhido. Aos dezoito
anos sai desse lar para ganhar a vida sozinho num mundo hostil. Durante os anos
no orfanato, a vida de carências lhe dá outro irmão, Ravi, peça fundamental na
costura da trama e única testemunha de sua vida anterior e de sua decisão de
assumir o lugar de Renato, o renascido. Coube a ele queimar as provas de seu
crime.
Os
dois irmãos sofriam de angústias diferentes e ambos foram mostrados em
encruzilhadas, em caminhos que se bifurcavam. Agora só há um, Christian
ocupando a vida de Renato, que foi batizado na piscina, uma simbólica cena de batismo
e transição para a outra vida, portanto renascido novamente. Ele aproveitou a
ocasião para furtar a vida do outro e junto com ela tudo que lhe fora negado em
oportunidades materiais, mas recebe junto todos seus dramas também. Embora só
tenha ficado um, o espectro do outro, do seu duplo, o atormentará e a nós
também.
Uma
das estratégias narrativas mais interessantes nessa primeira semana foi mostrar
as diferenças sociais entre os dois mundos através de vários elementos, seja a
festa de aniversário, as roupas de grife, os espaços de luxo/carência, o banho,
a mobília, as várias barreiras sociais separadas por muitos vidros (carros,
janelas, vidraças), evidenciando o mundo que Christian só podia ver pelas
frestas até que muda de lado.
Vale
destacar uma cena rápida, mas muito significativa, o diálogo entre o professor
(Tonico Pereira) e Christian, lembrando seus sonhos de infância no orfanato e
lhe presenteando com Memórias póstumas de Brás Cubas, também do nosso onipresente
Machado e lendo a seguinte passagem: “É muito melhor cair das nuvens que de um
terceiro andar!”. Uma cena típica do mentor, mestre e discípulo olhando as
estrelas, a máquina do mundo, que estimulou
no jovem o desejo de também como Brás poder sair por aí acotovelando a multidão.
Todavia, ele não é Brás, nem Renato, e sofrerá com os códigos do seu novo mundo
e com o olhar de Ravi pelo retrovisor, brilhante interpretação de Juan Paiva.
Ao
se tornar Renato, perde Lara, o oposto de sua esposa Bárbara, seu passaporte para cruzar a fronteira e pelo
que vimos até aqui esse triângulo pode render muito ainda. Lara é o retrato do bem,
da coragem, da mulher lutadora, ao contrário de Bárbara, mimada, fútil,
preconceituosa, peso que sua opção terá de carregar.
Não
podemos esquecer de Marieta Severo, que chegou iluminando tudo, com sua presença
leve, sábia e solar para salvar a neta das dores do luto, a cena delas no banco da
praça falando sobre os motivos para a felicidade foi belíssima ( talento de Lícia
Manzo, em retratar com lirismo as relações de afeto, como vimos em Sete Vidas e
A vida da gente) e já se insinua que ela também tem um enigma a ser revelado...
Meu palpite arriscado, tem a ver com o sogro do novo Renato.
Além
do já dito, a novela se destaca também nos núcleos paralelos, personagens
secundários e no humor ácido. A modelo que teme a velhice, a gordofobia, a
sucessão familiar, as traições, as amizades, a peruagem, os ricos falidos...Tudo indica que
vem novelão por aí! Um brinde à nossa sede de ficção que pode ser na flute de
Renato ou nos copos de requeijão de Christian.
E
com bônus de ouvir o nome de minha cidade todos os dias: ‘Não passa disso, não
me engana/ Que eu sou sul-americano de Feira de Santana!