A
série Dois irmãos nos apresentou
ontem seu último capítulo com a maestria dos grandes espetáculos. Um filme de arte exibido na televisão. As
páginas do romance homônimo de Milton Hatoum ganharam vida pelas mãos hábeis de
Maria Camargo, pela regência inconfundível de Luiz Fernando Carvalho, por uma
produção de arte minuciosa e por um elenco que nos fez perder o fôlego em
vários momentos. Os gêmeos rivais levaram às últimas consequências seu desamor
desmedido para desespero e ruína da família, protagonizando a cena bíblica já
antevista no mote da temática (pobre Zana, ela era sim mãe de Caim e Abel).
Havemos
de destacar na série, ontem especialmente, a grande força dos símbolos. A casa
desmoronando, as paredes nuas de lembranças, as águas sujas tudo devastando, as
folhas secas, os móveis sendo arrastados ou encobertos (amortalhados), os
sobreviventes da casa lembrando náufragos que tentam salvar alguns poucos
objetos em meio aos destroços. Um conjunto de imagens que corroboram a ideia de
decadência do clã. A casa, dantes fortaleza, sucumbe também, assim como seus
membros.
Dentre
os símbolos explorados ontem, não podemos esquecer o sangue que escorre da rede
após a cena violenta entre os irmãos (um é calculista, fere sem sujar as mãos.
O outro, força bruta, age agressivamente). Um elemento importante na simbologia familiar – o laço de sangue – foi utilizado para dar ênfase ao horror do quase
fratricídio cometido por Omar. Domingas tenta lavar as
marcas, esconder sempre as nódoas com sua servidão, mas o sangue persiste e
suja as mãos da matriarca. Para Felipe Sellier[1], a história de Caim e Abel
ecoa fortemente no imaginário dos escritores como fonte de inspiração: “o ódio
de um irmão, o derramamento de sangue, a agonia e as andanças do culpado, a proliferação
da violência constituíram uma surpreendente parábola, sempre presente nas
literaturas ocidentais.”
A rivalidade bíblica ambientada em Manaus no seio de uma família libanesa retomou tão bem esse tema universal e fez a pequena história cruzar-se com a História do país, nos emocionando verdadeiramente com a o capítulo sobre a ditadura e o AI5. Naquele dia tivemos muita pena de Omar, em Laval ele perdeu muito mais que um mestre, perdeu sua filiação a algo que o fez mais humano.
A rivalidade bíblica ambientada em Manaus no seio de uma família libanesa retomou tão bem esse tema universal e fez a pequena história cruzar-se com a História do país, nos emocionando verdadeiramente com a o capítulo sobre a ditadura e o AI5. Naquele dia tivemos muita pena de Omar, em Laval ele perdeu muito mais que um mestre, perdeu sua filiação a algo que o fez mais humano.
A
atuação de Zana no seu grand finale é
digna de aplausos. Giardini brilhou como num solo de ópera, ópera dos mortos,
ao rever seus ancestrais, ao expor sua senilidade, ao apego à casa e às
lembranças, ao ecoar sua eterna pergunta sobre a paz entre os irmãos. É interessante
perceber em toda a trama a recorrência às fotografias e espelhos, rejeição da
ideia de que os dois eram um só...Omar tratava sempre de destruir o que lhe lembrava
a imagem do outro ...
E
o que dizer de Nael, Irandhir Santos, personagem que considero um dos melhores
narradores da contemporaneidade. Sherazade que também narrou para não morrer, sempre
à espreita, sempre a observar por ângulos especiais e em closes únicos (os
enquadramentos da câmera destacaram bem seu foco narrativo de soslaio) os
segredos ditos e não ditos daquela casa. O herdeiro dos despojos, os ouvidos de
Halim, o filho bastardo da casa, o que recolheu as histórias e as costurou. Ele
sobreviveu para contar, saiu dos fundos da casa para frente de uma sala de aula,
apesar de tudo sorriu ao final, singrando o rio da vida. Ele a tudo assistiu,
ouviu e procurou sentido através da escrita. Vale ressaltar, o poema de
Drummond que apareceu no início e no final, atando as pontas da história
através da casa (Liquidação, ver postagem
anterior).
Como
o Rio Negro e o Solimões, imagem final da série, que não se misturam em razão
de suas diferenças, os dois irmãos jamais se uniram, causa da ruína da família,
metaforizada pela casa. Mas, causa também de podermos ler e ver uma das mais
belas produções de nossa literatura e teledramaturgia. Maktub! Ainda bem que
estava escrito....