O novo filme de Almodóvar, Julieta, é uma
daquelas tramas que faz nossos votos de amor às narrativas serem renovados
durante seus 100 minutos e continuam ecoando em nós por mais algum tempo.
Baseado no livro de contos Fugitiva de
Alice Munro (Nobel da literatura em 2013), o titulo original é Silêncio, um dos contos que inspiram o
cineasta espanhol. Os dois títulos, seja Silêncio
ou Julieta, fazem todo sentido ao
longo da história. Mas, para muito além da influência da autora canadense, o
filme estabelece um belo diálogo com a literatura clássica (tragédia grega) e a
força do destino presente no mundo grego.
Almodóvar é um
grande leitor/escritor de perfis femininos, suas mulheres têm sempre muita
força e os homens ao seu redor parecem sempre coadjuvantes perdidos no vendaval
de sentimentos que elas representam, afinal sempre precisamos volver ou saber
mais sobre nossas mães. Em Julieta ele não foge dessa regra e faz sua protagonista
brilhar em dois tempos. Uma jovem professora de Literatura Clássica com visual
punk dos anos 80, e no presente, uma mulher de meia idade atormentada pelo silêncio
imposto pelo fuga/sumiço de sua filha, Antía (personagem de uma obra grega
atribuída a Xenofonte, Os Efésios, um romance amoroso regido pela
interferência de Eros, considerado pela crítica uma obra feita para mulheres).
Julieta está
pronta para mudar-se para Portugal com seu atual companheiro quando reencontra
uma amiga de sua filha, Bea, que a faz reabrir as feridas e nos contar sua
história. Daí, em media res, como nos
épicos, vamos conhecer seu passado, numa escrita catártica de cartas para sua
filha. Ela vai desfiando no papel seu relato e nós vamos acompanhando suas
memórias em flash back,
principalmente seu romance com o pai de sua filha, Xoan, um pescador que
encontra numa surpreendente viagem de trem (há mais mistérios nessa sequência...)
e muda o curso de seu destino/viagem. Quando se apaixonam, ele cuida há anos de
uma esposa doente que vem a falecer e Julieta ocupa seu lugar, sua casa e
também herda sua empregada, sua amiga, ambas peças- chave no filme.
É interessante
notar a idéia de destino típica das tragédias. Além de ser professora de Literatura
clássica (dá uma aula sobre Ulisses e os sentidos do mar em grego, episódio em que
ele fica refém da deusa Calipso), quando conhece Xoan no trem ela está lendo um
livro sobre Tragédia grega. A questão da culpa vai surgir em várias cenas que
parecem se desdobrar muitas vezes. O mesmo que ocorre com a mulher de Xoan, vai
acontecer com os pais de Julieta, sua mãe adoece gravemente e seu pai arruma
uma amiga dela para cuidar da casa, mas o amor entre eles acontece e essa moça
também tomará o lugar de sua mãe. A ideia de cumprir uma expiação vai sempre se refazendo de várias formas e em várias personagens...
O drama que vira
a trama do avesso se dá quando Julieta descobre a traição de seu marido, eles discutem,
ela sai, ele vai pescar e morre numa tempestade e tudo isso ocorre enquanto Antía
está em um acampamento de férias. Daí em diante, o silêncio reina e esse será
um dos motivos da partida da filha, viagem incompreensível para sua mãe. Ela
passará a escrever para entender o que aconteceu...Colando os pedaços da
fotografia rasgada, um quebra-cabeças que vamos montando junto com ela, numa
busca densa pelas respostas.
Elas só se
encontrarão doze anos depois (quase como Ulisses), quando um elemento que o
destino mais uma vez reduplica faz com que sua filha a procure, claro que não
contarei aqui...E essa cena não veremos, ficamos com os créditos, uma bela viagem (odisséia), uma bela
música (Si no te vas) e a imaginar os abraços de reconciliação que se privaram por tanto
tempo.
Oh, Almodóvar,
que os deuses continuem te inspirando e que o nosso destino permita desfrutar ainda muito desse mar sem fim de suas
histórias...