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sábado, 9 de abril de 2016

O Amor de perdição de Tereza de Sá Ribeiro e Santo dos Anjos


 

 

Há um rio afogando em mim
Secando, secando, secando
Tem rompante os mistérios que já vi
Esperando, esperando, esperando o fim

Foi na margem do meu peito
Que você pisou e se fez dona
Só pra magoar minha ciranda
Que desanda, que desanda, se diz andar

Esse peso desaba e condena
A faminta pescadeira
E por mais que você não sinta
Ramos e remos, cores e troncos
Coroas viúvas
Do coito do corpo
Do corte da lua
Do sol do luar

Foi na margem do meu peito
Que você pisou e se fez dona
Só pra magoar minha ciranda
Que desanda, que desanda, se diz andar

Se esse rio desaguar em ti
Viverás, viverás, viverás sem mim
E se não acontecer assim
Morrerá, morrerá, morrerá enfim

 

 Os belos versos da música Margem, dos baianos Paulo Araújo e João Filho, umas das canções da trilha sonora de Velho Chico, que aliás tem se destacado, entre outros atributos, pela qualidade e variedade das músicas que vão costurando o enredo e dando o tom das histórias narradas (boleros, Tropicália, os violeiros, samba-canção, um mix da musicalidade brasileira). Como se fosssem vozes de um coral que vão regendo a novela, a trilha sonora cumpre seu papel de ser também um elemento narrativo. Como na música, o amor de Santo (Renato Góes, atuação surpreendente) e Teresa (Julia Dalavia) pode sufocar e morrer, pois configura-se como um amor de perdição. Mote de várias histórias alimentam a nossa tradição literária.

O amor entre jovens de famílias inimigas, ou reinos inimigos,  é o tema dos famosos amantes shakespereanos de Verona, Romeu e Julieta, uma das matrizes literárias das histórias de amor ao longo dos tempos. Ao lado de Tristão e Isolda, simbolizam o amor sem um final feliz romântico que tanto desejamos ver nas tramas e na vida. Esses fios também  alimentam  outro grande clássico da Literatuta portuguesa, Amor de Perdição(1862) de Camilo Castelo Branco. Igualmente oriundos de familias rivais, Simão Botelho e Tereza Albuquerque viveram um amor malfadado que lhes conduziram à perdição.

Assim como Santo dos Anjos e Tereza de Sá Ribeiro, os personagens portugueses  foram separados por suas famílias, ela vai para o convento e alimenta a dor do seu amor através das correspondências banhadas de lágrimas (para falar do papel das cartas nas tramas romanescas precisaríamos de um tratado, basta de lembrar de O primo Basílio ou São Bernardo só para provocar as lembranças), a separação e o peso da distância regam o sofrimento amoroso, vivificado somente através das memórias dos encontros clandestinos. Em Camilo, um amor casto, em Velho Chico, ardência consumada nas águas eróticas do rio.

Na trama contemporânea, em lugar da generosa Mariana, que mesmo apaixonada por Simão, é tão fiel que o ajuda a viver seu amor, temos Luzia (Larissa Goes), ardilosa, ressentida, invejosa, que ao extraviar e queimar as cartas, sela o destino da separação dos dois. A cena dela mentindo para  a mãe de Santo (Cyria Coentro, reinando como matriarca forte/frágil) sobre o conteúdo da carta foi espetacular. Além do suspense da cena, vale destacar a questão social do analfabetismo, que fez com que Piedade aceitasse sua versão como verdade.

O drama desse outro amor de perdição alimentou essa última semana com maestria. A severidade do pai, os protocolos conventuais com seus segredos e sussurros, a mãe solteira como uma mácula familiar, a fragilidade/brutalidade do Coronel diante do dilema familiar (o seu pranto em posição fetal foi simbólico desse abandono do amor materno, sua mãe, com licença do trocadilho, é a Encarnação do Diabo), o papel de Iolanda como uma deslocada naquele clã e  o conflito da mãe de Santo entre a felicidade do filho e a questão da rivalidade, elementos que compoem uma boa história de ser contada e acompanhada com sobressaltos e  emoções  pelos telespectadores

Segunda (11-04), entraremos em outra fase, penso que essa atual poderia render mais, mas novos afluentes nos aguardam. Os rios seguem cortando no peito dos protagonistas desse amor de perdição revisitado. Como na Quadrilha de Drummond, os pares foram trocados por forças externas aos seus desejos, a ciranda desandou como nos versos da música que servem de epígrafe para essa nossa reflexão, todavia na arte e na vida, os pares podem se cruzar por aí e espantar a saudade, essa “palavra triste quando se perde um grande amor”...e desaguar em mim e em ti do lado de cá da tela...afinal, o amor é o tema dos temas...

 

           

domingo, 27 de março de 2016

Primeiras águas: Velho Chico – um rio caudaloso e seus percursos


A novela Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa e seu clã, nas suas duas primeiras semanas de exibição já diz a que veio: emocionar o espectador afeito aos dramas de nossa brava gente brasileira. Promete e tem cumprido a função de nos levar ao encontro dos grotões do Brasil rural com todas as suas cores e tintas, sons e sabores. No primeiro capítulo, cenas passadas numa Feira Livre, (espaço por excelência de encontros e matrizes de tantas cidades brasileiras) trazia num palco mambembe a encenação de um mito fundador do Rio são Francisco. Teria ele brotado das lágrimas da índia Iati, habitante de uma tribo da Serra da Canastra, que ao chorar pela morte do guerreiro amado, dera vida ao protagonista que nomeia a  trama. Mais adiante (e já em muitas cenas) soa como música de fundo a belíssima oração de São Francisco de Assis, explorando um dos eixos principais da trama, a fé católica de herança portuguesa vista sob várias nuances. Em outra cena Doninha (Bárbara Reis), brilhante no seu papel, representante da matriz africana, uma espécie de griot, contadora e guardiã  de histórias, narra para as crianças uma lenda da serpente de fogo ligada à origem dos ancestrais da Casa Grande que ela habita. A novela é portanto um pedaço do Brasil, um pedaço de nossa história, escrita por tantas mãos, canetas e armas. Rio nacional caudaloso que atravessa os espaços e as personagens da novela.
Afrânio de Sá Ribeiro (Rodrigo Santoro volta às novelas com tudo), o novo Saruê, coronel à contragosto é o próprio herói problemático, angustiado pelo destino que não era seu, mas foi chamado a cumprir. Saltando das páginas de Jorge Amado, Adonias Filho, João Ubaldo, Ariano Suassuna, Lins do Rego ou ainda Guimarães Rosa, vive num embate interno e externo, representado pelo dentro e fora da Casa. Da relação doentia com a mãe, a diabólica beata Dona Encarnação (Selma Egrei, um quê de Gabriel Garcia Marquez), da influência perniciosa do capataz Clemente (Júlio Machado), do amor interrompido naquele outro mundo da Tropicália, do conflito dos negócios, do casamento na ponta da faca à viuvez prematura, emerge um drama em gente, que não conseguimos rotular de bem ou mal. O que sabemos é que é pungente assisti-lo e prazeroso acompanhar os demônios que lhe habitam. Talvez seja essa a cabeceira do Rio, mas há outros afluentes dignos de nota.
A casa do Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi) e Dona Eulália (Fabíula Nascimento), espécie de voz socialista em meio aquele capitalismo-coronelismo-voraz, é um espaço de afetos. Adoção, fraternidade, generosidade, trabalho digno, amor verdadeiro que acolheu a família de Belmiro (um Oscar para Chico Diaz e Cyria Coentro, casal de retirantes espetacular) e  na dor e no leite materno se irmanaram. Em contraponto com a Casa dos saruê, aqui é um lar, com uma mesa sempre posta e lume aceso.
Na figura do Padre Romão (Umberto Magnani) temos um amálgama de várias faces do catolicismo que vai de Padre Cicero (físico bem semelhante), passa pelas causas sociais (vide cena do soro caseiro), à uma visão teológica panteísta (sua explicação lembrou um poema de Alberto Caeiro), sem perder a função de conselheiro e pastor daquele rebanho, gado difícil de conduzir.
Notemos ainda a sofisticação de algumas estratégias narrativas presentes na trama. A presença das cantorias dos violeiros, que como uma espécie de coro-grego-sertanejo vai amarrando as pontas soltas da narrativa através de suas melodias. O ritmo frenético do primeiro capítulo (sexo, drogas e Tropicália) para situar em que mundo vivia Afrânio em Salvador e em que mundo ele passaria a ser Senhor, lugar onde o tempo está estacionado e as relações são ainda coloniais/medievais, aqui seu diploma de Dr. nada vale. Ou ainda as conversas no Bar/Armazem, único espaço de socialização, simulação de um parlamento no qual os discursos emergem à cada gole de pinga.
Outro aspecto digno de nota é a qualidade da direção de arte, figurino e fotografia com a assinatura inconfundível e autoral de Luiz Fernando Carvalho. Há muito a se elogiar em todas as cenas. Escolho aqui a casa de Leonor (Marina Nery, versão cabocla de Maria Fernanda Cândido/ Sophia Loren) com suas paredes sem reboco ou tintas amareladas, santos esmaecidos, escassa mobília de madeira, potes de barro, lençóis no “quarador”, retratos pintados, enfim uma casa sertaneja com certeza. Os altares, tanto das igrejas e capelas quanto das casas, é outro espetáculo pormenorizado em grande estilo.
Nesse rio e sob ele, nesse pedaço de Brasil, cabem muitas histórias. Latifúndio versus minifúndio, ideais cooperativistas, criança desaparecida, religiosidade mística e carnavalizada, amores vibrantes, vinganças de família, ingredientes que nos prendem nesse barco da ficção desde sempre. Que o Nego D’água e as Carrancas mantenham a narrativa navegando nesse fluxo! Em breve as águas baixarão e veremos o que ainda nos reserva os outros portos desse novelão!
 
 

sábado, 12 de março de 2016

As Regras do jogo – O juízo final


O final de As Regras do jogo  já não guardava tantos segredos assim. Além do assassinato de Gibson (o mistério foi curto, não virou uma questão nacional como a de Odete ou Salomão), restavam poucos desenlaces.  O ápice se deu no tabuleiro de xadrez com todo os vilões reunidos na mesma sala e vestidos de preto e branco prontos para o xeque-mate com os mocinhos Juliano-Dante(esses só mocinhos mesmo e muito bons representantes do Bem), jogo que inspirou a trama como mostrado em sua abertura. A luta do bem e do mal, representada por personagens ambíguas que oscilavam o pêndulo para lá e para cá todo o tempo, jogou também conosco que oscilamos sobre qual partido tomar. Sejamos sinceros, não somos tão bonzinhos assim, queríamos um final feliz para Atena e Romero, e Ascânio é claro. Mas também adoramos os casamentos e as crianças(Merlot contribuiu bastante, até a cobertura de Copacabana ficou pequena), símbolo maior da perpetuação da vida e do final feliz em contínuo.

Vários diálogos durante a trama reforçavam essa idéia de que não somos uma coisa só, ouvimos de Zé Maria, que ia da extrema ternura ao bruto ódio na mesma cena, que “ninguém é uma coisa só”, temos nossa luta diária entre nossos anjos e demônios. Romero Rômulo era o principal símbolo dessa duplicidade, lutando o tempo todo com essas faces culturalmente dicotômicas. Talvez sua doença, um pouco esquecida no correr da história, fosse uma metáfora dessa luta que o punha em processo degenerativo, carnavalizado em ritmo de rock and roll. A fala de Juliano para ele sobre sua disputa constante na hora de apertar o gatilho foi bem emblemática e, por fim, ele optou pelo bem, como soe acontecer nos finais. Ele foi purificado pelo amor, ainda que bandido, de Atena e pela lembrança afetuosa de Djanira.

Penso que a questão principal da facção perdeu um pouco o foco no correr do tempo, mas ainda assim somou muitos acertos. Como trama realista e verossímil que foi, os ecos do momento político estridente que vivemos reverberaram nos discursos dos protagonistas nesses últimos dias, acertou em escancarar a força do crime organizado e seus tentáculos em todos os espaços, além das Ongs e Fundações de fachada que pipocam nos noticiários de tempos em tempos. Creio ainda que a novela brilhou mais nos núcleos secundários como a excêntrica família de Feliciano e a turma da Macaca.

A idéia da Macaca como espaço idílico, colorido e solar onde os de fora corriam para resolver seus problemas e crises, a despeito de que os habitantes de lá traziam outros tantos problemas, foi muito feliz. O quarteto Oziel-Indira-Rui-Tina nos rendeu boas cenas, o drama de Domingas e Juca foi bem explorado(  dispensaria o drama deslocado e facilmente descartável de César/Rodrigo), o universo do funk e das "Mandada" uma deliciosa caricatura, Adisabeba poderosa como a Jocasta do Morro.

Assim vamos concluindo que não foi uma grande trama, mas uma trama com grandes cenas e texto irretocável. Concordemos que é muito difícil fazer outra Avenida Brasil, mas João Emanuel Carneiro é uma estrela da nova geração e não vai viver sob a sombra de um sucesso único, como já mostrou em A Favorita, além de contar com colaboradores talentosos como o baiano (feirense) Claudio Simões. Tony Ramos ainda consegue ficar melhor a cada papel, aqui se metamorfoseando várias vezes para ocultar suas verdadeiras intenções, falando eloquentemente pelo olhar e pelos silêncios. Tonico Pereira, brilhou, solou com Ascânio, despertava em nós sentimentos que variavam do asco à piedade em segundos, era um cordeiro em pele de lobo e vice-versa. Vamos em frente e Vitória na Guerra pela audiência, porque segunda vamos navegar em outras águas que já nos convidam a mergulhar nesse outro Brasil. Salve, Velho Chico!

 

 

terça-feira, 8 de março de 2016

Êta Mundo Bom...Um Caldinho Cultural


 

    A novela Êta Mundo Bom! de Walcyr Carrasco nos brinda todos os dias com uma trama leve, divertida e deliciosamente previsível. Entendemos aqui o previsível como uma virtude e não um defeito a ser cobrado. Pautado claramente nos pilares folhetinescos, já sabemos o que esperamos, mas mesmo sim é prazeroso acompanhar. O bem e o mal devidamente separados,  identificados e bem representados em personagens que não jogam com o telespectador. Já dizem a que vem desde o inicio, como é o caso da megera vivida por Flávia Alessandra, a antagonista loura má, papel dantes vivido por ela mesma em Alma Gêmea.

    O enredo dialoga com muitos clássicos da literatura, uns de forma mais explícita, outros mais oblíquos. O Cândido de Voltaire é a mola mestra da trama, nomeia o protagonista e ecoa em todo seu núcleo, com alguns ajustes de nomes e papéis. O professor Pangloss, virou Pancrácio (nome machadiano), na excelente interpretação de Marco Nanini, fazendo vários papéis para sobreviver sem trair seus princípios filosóficos (lembro-me bem de Um Sonho a mais quando ele e Ney Latorraca vestiam-se de mulher, pura transgressão nos anos 80), pautado no otimismo absoluto de vivermos nos melhores do mundo, mesmo com tudo desmoronando ao seu redor. Os filmes de Mazzarropi, personagem simbólico do matuto brasileiro ( a La Jeca Tatu de Monteiro Lobato) é outra fonte explícita.

    Além disso, podemos ir desenrolando o novelo da trama e vendo ecos  de O Pagador de promessas de Dias Gomes( a amizade com o burro), O jardim secreto através do pequeno cadeirante maltratado pela madrastra ou o próprio fato de o burro chamar-se Policarpo, o que nos remete a Lima Barreto. É um belo caldo cultural que vai engrossando nossa sopinha das 18h e nos fazendo vibrar pelas soluções simples e certeiras. Também vale notar que o autor dialoga com ele mesmo, para além do intertextual, temos o intratextual, pois estamos novamente apreciando em alguns momentos os mesmos motes de O cravo e a rosa, Chocolate com pimenta e Alma gêmea, outros saborosos sucessos de Walcyr também exibidos na boca da noite.

    Socialmente, temos um Brasil com os valores dos anos 40, a virgindade como tesouro moral, a sexualidade velada( a cena do cegonho foi hilária), o patriarcardo-machista que oprime as mulheres (núcleo de Tarcísio Filho é um prato cheio), a religiosidade crédula, a mãe solteira  excomungada do seio da família, entre outros temas tabus que nos fazem até sorrir hoje. A pensão é um capítulo à parte(todas as pensões nos remetem a Balzac e a Eça), um microcosmo perfeito dos vícios e virtudes humanas, uma amostra de todos nós. Cenários, figurinos, trilha sonora e diálogos bem construídos dão um tom de inocência e beleza típica do nosso amado maniqueísmo.

    A trama é boa porque simplesmente é boa, como na novela do rádio que os personagens vão acompanhando e se emocionando(metonímia do encantamento das narrativas, seja qual for o veículo). As ações vão se desenrolando agilmente, com grandes possibilidades de redenções amorosas como  acontece com os melhores folhetins, afinal um Romeu tem que render-se à sua Julieta. E nós seguimos torcendo por Candinho e  por todos os mocinhos e mocinhas, e até mesmo pelos vilões. Eta, lasqueira!!!

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Minhas tardes com Margueritte: um canteiro de palavras e afetos


Filme Francês de 2011, dirigido por Jean Becker, adaptação do livro de Marie-Sabine Roger, La tête en friche, que significaria, aproximadamente, em português: cabeça ainda não cultivada. No Brasil, recebeu o doce nome de Minhas tardes com Margueritte. Juntemos os dois títulos e temos uma idéia perfeita do roteiro do filme. Uma bela história da amizade improvável entre uma senhora culta, elegante e solitária e um bronco de meia idade, que vive de bicos e tem como marca maior uma dificuldade com a linguagem. São antagônicos em tudo, peso, idade, cultura, sofisticação, todavia serão atados através da aprendizagem simultânea desses mundos tão aparentemente distantes. Margueritte (Gisèle Casadesus) e Germain (Gérard Depardieu) representam com fulgor esse misto de drama com toques bem dosados de comédia. Ela especialmente parecida com Dona Cleonice Berardinelli, nossa mestre maior da Literatura portuguesa no Brasil, para mim um grato presente.
Conhecem-se numa praça onde observam um bando de pombos (sempre unidos e protegendo uns aos outros, um dos símbolos da agregação e da necessidade de nomear o mundo, principais temáticas do filme). Ela sempre lendo seus clássicos, desperta o interesse daquele homem. E daí as conversas começam e se enredam com a história da vida sofrida dele, mostrada através de magníficos flashbacks, que nos põem a par de sua trajetória de vida como filho único e sem pai de uma mãe impiedosa e de suas muitas dificuldades com a linguagem e a leitura, frutos de uma escola cruel com professores igualmente cruéis.
Uma das cenas mais belas do filme acontece quando Margueritte (com dois tt, dado relevante para seu processo de encantamento com a linguagem) lê para ele A peste (1947), obra prima de Albert Camus, e as imagens da epidemia dos ratos vão invadindo sua mente e a nossa também (outra representação feliz do filme, a forma como a literatura é capaz de trabalhar e ampliar nossa leitura de mundo).
Destaca-se também a relação de Germain com o dicionário, na cena em que ele vai lendo no Petit Robert, presente da sua mestre, o significado de algumas palavras para o seu gato, tentando reproduzir o que sua amiga sábia faz com ele, mas esbarra na complexidade da língua que não dá conta de nomear plenamente o mundo, a variedade de seus tomates por exemplo.
 
Ainda vale ressaltar, o ciclo de amigos de Germain e a relação com sua namorada (vai crescendo ao longo do filme), ainda que gozadores e canalhas há ali um princípio de fraternidade. São solidários ao seu modo, mas como  um dos motes do filme, é “é difícil dizer”, emblema disso é a tentativa cômica  de Germain em consolar a matrona dona do bar, abandonada pelo amante jovem por uma mocinha, as emendas são sempre piores que os sonetos. Todavia, na medida em que seu processo de letramento com Margueritte vai se desenvolvendo, torna-se difícil sua comunicação com esses antigos pares, seu mundo vai ficando maior, assim como seu canteiro de hortaliças. Já com a namorada, o conhecimento que vai adquirindo melhora em muito a qualidade de seu amor por ela, o romance fortuito se transforma no final em uma família com a presença inesperada de Margueritte como membro especial, outra sacada inteligente do filme, as famílias vão muito além dos laços de sangue.
 
Filmes assim são edificantes para além do prazer da experiência estética, pois nos faz acreditar no poder dos laços afetivos e na magia do conhecimento através dos muitos livros citados na trama e das conversas profundas entre as personagens. Saímos melhores depois de uma hora e vinte minutos imersos no universo de tanta sensibilidade ao retratar o mais fino tipo de amor: A amizade, que só é verdadeira quando se dá através da partilha. E emoldurada pela força encantatória dos livros e das palavras ficou ainda melhor...

 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Ligações perigosas: Entre cartas, alcovas e sussurros...

 
A minissérie exibida nesse início de ano é uma adaptação do clássico francês Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos(1741-1803), publicado em 1782. Romance do gênero epistolar que narra, ao longo de mais de uma centena de cartas, os bastidores da aristocracia francesa antes da Revolução(1789), através da correspondência  entre A Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont. Ricos, frios, libertinos, ociosos e amorais, encontram seu prazer na manipulação e sedução. Aliás, essas são as palavras de ordem da obra, também e tão bem preservadas na adaptação brasileira (bem como para o cinema americano nos anos 80, excelente filme com Glenn Close e John Malkovich).
Escrita por Manuela Dias com supervisão de texto de Duca Rachid, direção geral de Vinícius Coimbra e direção de núcleo de Denise Saraceni, a trama foi ambientada no Brasil na primeira metade do século XX. Com fotografia, figurino, cenário e texto irretocáveis, temos a nossa Marquesa, Isabel D´Ávila de Alencar (Patricia Pillar) e o nosso Visconde, Augusto de Valmont (Selton Mello). Mestres nos jogos vorazes dos destinos, usam as personagens ao seu redor como se a vida fosse um tabuleiro, onde eles vão movendo as peças e conduzindo os fios das criaturas que se tornam títeres indefesos em suas mãos, fantoches dirigidos pelo casal de protagonistas. Vale lembrar que manipular vem do latim manipulus, manipulare, manipulatio, manipulator, compostos por sua vez das raízes latinas manus (mão) e pleo (encher), ou seja, sob suas mãos se enredam todos.
Um dos aspectos mais intressantes da trama é o tom de segredo metaforizado pelas cartas e seu lacre vermelho. Tudo é muito sutil, muito silencioso, muito baixinho,  os sussurros vão regendo a narrativa, como as teias da aranha que vão lentamente atraindo suas presas. Através das frestas das portas, do trançado das gelosias, da fechadura das alcovas, das remadas dos botes  e dos cocichos dos subalternos os planos de sedução e vingança vão se concretizando na penumbra, enquanto nas salas e salões toda a luz é mantida.
Nessa mesma cadência do sussurro, segue o erotismo explorado a cada capítulo, sempre em doses bem administradas (manipuladas de acordo coma necessidade do paciente), pois os manipuladores não tem pressa em retardar seu gozo de prazer, triunfo e vingança. Basta que descubram as fraquezas das presas (todos temos), pois como no conto de Machado de Assis, A igreja do diabo, em cada manto de seda há uma franja de algodão, puxemos a ponta e a virtude pode virar vício.
Nossa Marquesa é a própria encarnação da Viúva Negra, megera indomada, dissimulada e charmosa. Nosso Visconde, o próprio Don Juan, o prazer reside na conquista, uma vez sua, já não lhe serve, é hora de partir para outros lençóis. Todavia, os planos começam a ruir e prevemos que serão mudados de fato, pois vejam só, tem um amor no meio do caminho. E este Senhor costuma ter mania de alterar os rumos, não importa quais sejam as regras do jogo. O nosso Visconde dos trópicos começa a se render à doce e pia Mariana( como a Sóror Portuguesa), troféu tão difícil de conquistar, tão frágil e tão forte, agora consumida pela culpa que tenta expurgar com o seu sangue(esperamos que não tenha o mesmo fim de Emma, Luísa ou da Dama das Camélias).
Como leitores/espectadores românticos que somos, torcemos pela redenção, pela remissão dos seus pecados pela via amorosa. E enquanto isso seguimos curiosos pelos segredos sussurrados  sob o lacre vermelho...Pois mais adiante, o tom é outro, o vermelho é outro, é uma guerra, Neguinho...

sábado, 21 de novembro de 2015

Que horas ela volta? Arquitetura social e afetiva do Brasil


Que horas ela volta? Arquitetura social e afetiva do Brasil

 

O filme Que horas ela volta? (2015), escrito e dirigido por Anna Muylaert, nos convida a enfrentar uma incômoda questão brasileira herdada de nossa história colonial: O difícil lugar da empregada doméstica no nosso país. Regina Casé protagoniza de forma visceral a nordestina Val, que migra para São Paulo para trabalhar numa casa de classe alta no Morumbi, para poder sustentar sua filha, Jéssica, que ficara em Pernambuco com os envios mensais para suas despesas, preço de sua ausência. Servirá a todos devotadamente, com aquele misto de profissional “como se fosse da família”

Nessa casa mora um casal e seu filho Fabinho (Michel Joelsas), a quem Val dedica todo amor que seria dispensado a sua menina. D.Bárbara (Karine Teles), Seu Carlos (Lourenço Mutareli) são estereótipos típicos da alta burguesia. Ele um artista improdutivo e em crise que vive de herança, sempre sorumbático. Ela, fútil, distante e carente. Fabinho só conta mesmo no plano afetivo com o colo e os abraços de Val. E há de se afirmar, sem nenhuma dúvida, que o amor entre eles é verdadeiro.

A rotina massante da casa será quebrada com a  chegada de Jéssica (Camila Márdila), que vem prestar vestibular para Arquitetura (estimulada pelo seu professor de História) e abala toda a planta da casa, estruturada sob os ditames de Casa Grande/Senzala. A jovem teima em circular e ocupar os espaços que a mãe nunca cruzara. Daí brota o conflito do filme. Há uma fala de D. Bárbara, quando é apresentada para ela, que traduz muito um dos focos do filme: “É, esse país está mudando mesmo.”, quando descobre que a jovem prestaria o mesmo curso e universidade que seu filho e que, além disso, tem voz e opiniões próprias ou impróprias para sua condição.

Aliás, a presença da Arquitetura no filme é deveras simbólica, discutindo sempre a temática do espaço social, seja ele geográfico ou sentimental. Uma das grandes metáforas da trama é representada pela piscina. Local de lazer onde Val nunca entrou. Sua filha foi jogada  nela de brincadeira (cruzando a fronteira) e por essa razão a patroa manda esvaziá-la, inventando a presença de um “rato”. Uma das grandes cenas do filme se passa nesse retângulo, quando Jéssica é aprovada para a segunda fase do vestibular (Fabinho perde)  e sua mãe liga para parabenizá-la de dentro da piscina. Mesmo vazia, é para Val uma grande subversão, carnavalização total.

Ainda quanto aos espaços, vale destacar a visita ao Ed. Copan, a ida à Universidade sempre guiadas pelo Patrão. Ele é atraído pelo ímpeto da jovem naquela casa, tão estéril de sentimentos e comunicação, confunde seus sentimentos para desespero de Val. Bem como os quartinhos e casas da favela alugados pela mãe e pela fiha quando resolvem sair da Casa Grande.

O filme é muito sensível na construção dos detalhes. Ele não é só bom porque é engajado ou revolucionário. É bom, sobretudo, nos detalhes que simbolizam a presença das diferenças sociais e seus intricados elos. Observem com atenção o sorvete, a cadela, as fotografias, o almoço dos empregados. Tudo é costurado com agudeza, como o preto no branco, ou o branco no preto do jogo de xícaras difícil de ser arrumado e equilibrado, dado como presente de aniversário para a patroa por Val e rejeitado por ela. Notem que será subtraído para sua morada e brindado com alegria, inaugurando sua nova vida quando se demite, pois essa sim é uma ocasião especial.

A narrativa é incômoda, como a resignação de Val em algumas cenas ou como a presença deslocada de Jéssica naquela mansão(hospede ou filha da empregada?) porque põe a lupa para dentro das casas, escancarando seus problemas, metonímia do Brasil contemporâneo. É também extremamente sensível porque os dramas humanos unem os homens e mulheres, unem mães e filhos. Afinal, seja Fabinho, Jéssica ou o seu filho, todos querem saber Que horas elas voltam?

 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

A paternidade labiríntica em As Regras do Jogo


A paternidade labiríntica em As Regras do Jogo

 

Em As Regras do Jogo, novela das 21 horas da Rede Globo, um tema em especial nos chama à reflexão: A representação da paternidade. Várias relações paternas são retratadas de forma complexa e, como no estilo inconfundível de João Emanuel Carneiro, nos convida a rever nossos paradigmas e estereótipos.

Zé Maria (Tony Ramos) que já traz a ironia no nome, em nada se assemelha ao que se anuncia. Um vilão ambíguo e enigmático que vai se revelando aos poucos, tem seu ponto fraco ( que faz oscilar o pêndulo entre o bem e o mal que a novela explora) no amor controverso que sente pelo seu filho Juliano(Cauã Reymond). Relação extremamente tensa, agora que seu filho descobriu sua face sombria. Um pai pode amar e prejudicar simultaneamente seu único filho em nome de sua irmandade/facção? Um filho pode querer a prisão do pai, antes idolatrado, em nome de sua sede de justiça? Nesse sacrifício de Isaac revisitado, tudo ainda pode acontecer. Personagens tão díspares questionam esse amor que seria incondicional.

Outra relação paterna inusitada é a de Romero Rômulo (Alexandre Nero) com Ascânio(Tonico Pereira). Ascânio seria o que se chama no jargão da malandragem seu “pai da rua”, o malandro que o acolheu na marginalidade e o ensinou as primeiras lições do crime, explorando o “potencial do filhinho”. RR seria uma espécie de Oliver Twist que nutre amor e ódio, raiva e pena, atração e repulsa, desprezo e piedade pelo seu mentor. Aliás, esses mesmos sentimentos são despertados em nós telespectadores pela brilhante atuação de Tonico Pereira. Para alargar mais esse modelo de família marginal entra em cena Atena (Giovanna Antonelli), que passa a ser mais um membro do clã, alimentando no ”velho” uma paternidade incestuosa, uma nova parceria, pois tudo naquele núcleo é meio amoral. Não esqueçamos que Tóia (Vanessa Giácomo) e Romero em tese são irmãos, pois são filhos da mesma mãe(ela, adotiva amada, ele, biológico rejeitado).

Na mansão dos Stuart, o patriarca capitalista e atormentado é desafiado pelo neto comunista, pela filha bipolar, pela esposa ética e pela neta rebelde. O genro que seria seu modelo de filho e sucessor é um blefe. E ainda há o mistério sobre a paternidade dos filhos de Nelita (Bárbara Paz), que, ao que sugere a trama, virá dos segredos da área de serviço.

Mas o PAI da trama é o nosso Feliciano(Marcos Caruso), um pai agregador, um amor sem reservas. Naquela cobertura, o metro quadrado mais habitado de Copacabana, o amor paternal transborda, há lugar para tudo e todos e o conceito de família vai ganhando novos contornos inimagináveis. Com aquela dose maravilhosa de humor e crítica de costumes, carnavalização completa.

Sigamos pelos labirintos da narrativa, à espera das surpresas que a trama ainda trará, a nos surpreender a cada capítulo com seu título inédito que nos convida para novas emoções e às novas regras...

 

 

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Além do Tempo e da Eternidade


Além do Tempo e da Eternidade


 
Além do Tempo surpreende a teledramaturgia ao propor uma trama com duas fases de uma forma inédita. Até então, as novelas lançavam mão de recursos como o flashback e a memória das personagens para mostrar a interferência de fatos passados nos sucessos presentes (Alma Gêmea é um bom exemplo). Todavia, a novela das 18h vai mesmo Além do seu tempo ao mostrar duas vidas distintas de cada personagem com clara conotação espiritualista, através de duas reencarnações distantes em 150 anos.
O capítulo de hoje (21-10) encerrou um tempo, situado no século XIX, com toda magia que ele pode oferecer. Foi um capítulo brilhante com todo o fulgor de um clímax esperado nos grandes finais. Para alimentar o imaginário vitoriano (sim, Condessa Vitória) um duelo traiçoeiro, no melhor estilo capa-espada-penhasco, com Melissa e Pedro pintados com todas as tintas da vilania. Ambos foram incitados a perdoar e seguir em frente, mas optaram pelo ódio, e, de certo, responderão por ele na próxima etapa. O carma virá na nova fase, todas as personagens vestidas com outras roupagens, como mostrou a instigante chamada, reviverão os dramas do passado num contexto contemporâneo.
Desde sexta passada, num capítulo que lavou a honra do telespectador e nos fez vibrar com tanta beleza, os ares já eram de final. O casamento desfeito no altar com a revelação do segredo do diário (Ah... o século XIX como não suspirar ?), o príncipe no cavalo raptando a mocinha, as identidades reveladas, novos pares se formando, o bem vencendo o mal. Mas, com ventos novos soprando, não era o fim, era o recomeço de novas vidas construídas com o barro moldado no passado.
E por falar em ventos soprando a melhor metáfora desse “fechamento” de ciclo foram as velas se apagando continuamente no casarão da Condessa. Uma cena lapidar que sugere fins e recomeços, vida e morte, luz e sombra. Como uma trama de cunho espiritual, muito se falou sobre o poder do perdão, aqueles que conseguiram perdoar renascerão mais leves, os outros continuarão arrastando suas correntes.
Cortando para o século XXI, o anjo, antes cocheiro, agora atua no metrô( imagem contemporânea por excelência) e continua conduzindo os destinos. Lívia e Felipe num olhar eloquente se reconhecem, a reminiscência platônica entra em ação, é o amor que se eterniza  para Além do Tempo. Sigamos também apaixonados pelos próximos capítulos...
 

sábado, 10 de outubro de 2015

Como e porque sou noveleira


Como e porque sou noveleira
José de Alencar (1829-1877), um dos maiores intelectuais e ficcionistas desse país, em um texto autobiográfico de grande beleza Como e porque sou romancista[i] narra, entre outras tantas memórias, um episódio de sua infância que retomo aqui nesse preâmbulo:

Não havendo visitas de cerimônia sentava-se minha boa mãe e sua irmã D. Florinda com os amigos que pareciam, ao redor de uma mesa redonda de jacarandá, no centro da qual havia um candeeiro. Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava à leitura e era eu chamado ao lugar de honra. Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo e bem pesado. Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual se desfazia em recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido. Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes o seio. Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas. Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o Revd.º Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao entrar – Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda mais perturbou-se: -Que aconteceu? Alguma desgraça? Perguntou arrebatadamente. As senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos o pranto e evitar seus remoques, não proferiram palavra. Tomei eu a mim responder: -Foi o pai de Amanda que morreu! Disse, mostrando-lhe o livro aberto.

Tal cena, um serão de leitura bem aos moldes burgueses do século XIX, nos remete diretamente à relação do brasileiro com a telenovela. As reações da plateia descritas pelo autor de O Guarani ainda permanecem nas salas de nossas casas e estendem-se pelo dia seguinte onde baste que dois espectadores se juntem em seu nome, ali ela estará. É sabido que o gênero advém do folhetim romântico, romance em fatias, dividido em capítulos e saboreado aos poucos, sorvido em goles diários. Daí tantas semelhanças de heróis e mocinhas, romances proibidos, vinganças, segredos, sangue e lágrimas.
Talvez daí também a sua sobrevivência em tempos de tanta concorrência de outras telas. O drama humano sempre nos atrairá e conquistará nossa empatia, independentemente da história, sempre torceremos por uma personagem em detrimento de outra e reclamaremos um final feliz e, se possível, com casamento, flores e bebês. Para o vilão nada menos que loucura, morte, humilhação ou cadeia nele!
Para além das emoções catárticas do serão de Alencar e dos nossos, a literatura propriamente dita (aquela que é meu amor primeiro) e a teledramaturgia é também um veículo difusor de conhecimento. A sua  mathesis, como registrou Barthes, ou seja a sua força de transmitir saberes é um dos seus tripés(ao lado da  mimesis e semiosis) e concordamos que a novela brasileira tem desempenhado com força esse papel. Concordamos também que num país de índices mínimos de leitura de qualquer tipo, a novela tem nos ofertado algumas aulas sobre nossa história, possibilitado discussões sobre graves problemas e influenciado comportamentos e mudanças deles.

Se pensarmos em alguns temas como a escravidão, por exemplo, tivemos aulas inteiras sobre a barbárie que esse fato representou e continuou representando depois dele. Escrava Isaura(sucesso retumbante em todo mundo), Sinhá Moça, Força de um desejo, Lado a Lado e Além do Tempo(em exibição) mostraram para nós uma face maldita e mal dita da nossa nação. Com cenas memoráveis como os castigos de Isaura ou a abolição em Sinhá Moça (reescrita lindamente no seu remake para abarcar discussões contemporâneas). A imigração e seus desdobramentos nos renderam cenas antológicas em Terra Nostra ou O Rei do gado.

Sobre a ética ou a falta dela rememoro com prazer O Dono do Mundo (miserável Dr.Felipe Barreto, como as tias de Alencar, já te xinguei muito) ou a inesquecível Vale Tudo, que, como sugere o título escancarou o gênero ao premiar o vilão Marco Aurélio com um final feliz fugindo num helicóptero e nos dando uma simbólica banana, ou ainda o emblemático herói Sassá Mutema de O Salvador da Pátria. Temas ligados às questões de saúde estiveram presentes em diversas histórias, Câncer, Leucemia, Transplantes, Síndrome de Down, Autismo, Esquizofrenia, Deficiência visual entre tantos que, segundo dados oficiais, fazem o brasileiro correr atrás de informações, exames e consultas.

Os temas tabus, que são tantos por aqui, não fugiram das telas. Se tomarmos a questão homo afetiva como modelo teremos uma travessia dolorosa que foi da morte do casal lésbico na explosão do Shopping em Torre de Babel pela rejeição do público, a atores que apanharam na rua por insinuarem um par romântico (Jeferson e Sandrinho em A próxima vítima) para uma  aceitação, ainda que polêmica,  de casais como Félix e Nico em Amor à vida(com direito a beijo apaixonado) e de famílias como a das brilhantes damas Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em Babilônia.  É como se as tramas fossem formando paulatinamente uma sociedade para a tolerância e aceitação.

Ainda no quesito comportamento, o inventário seria infinito, divórcios, adoções, famílias-mosaico, crises de meia idade, drogas, direitos femininos e feministas, violências diversas, enfim e sem fins, seria impossível elencar. E meus leitores, se é que alguém me acompanhou até aqui, devem ter percebido que estou tratando aqui só das novelas verossímeis, aquelas pautadas no real concreto, porque para ir para os reinos encantados da fantasia, onde outros tantos valores e saberes também são projetados, precisaríamos de rios de caracteres e pixels para encantar esse cordel.

Vou ficando por aqui e como os ouvintes de Alencar, continuo me emocionando com as tramas, da literatura e da tela, pois a arte nos dá o direito aos sonhos, mas também, uma overdose de realidade, ainda que ressignificada pelo espelho estilhaçado da ficção, como nas camisetas panfletárias de Romero Rômulo, o feijão e o sonho...

 

 

 




[i] Escrito em 1873 e publicado em 1893.

sábado, 26 de setembro de 2015

Verdades Secretas ou A vida como ela também é

                                Verdades Secretas  ou A vida como ela também é
A novela das 23h00h, Verdades Secretas, de Walcyr Carrasco, dividiu o público e fez muita gente dormir mais tarde nos últimos dias. Ancorado no mundo e, sobretudo, no submundo da moda, trouxe à tona aspectos nem tão glamourosos assim. Escancarou detalhes do backstage desse universo, jogando luz mais para os bastidores que para as passarelas propriamente ditas. O book rosa foi o símbolo dessa escolha temática principal, com a sobrecapa cor de rosa encobria a degradação das modelos, que, seduzidas pelos holofotes, acabam por cair num mundo sem cores. Arlete ao assumir sua nova identidade, Angel, faz o rito de passagem para esse outro mundo acinzentado. A ninfeta, o mote da Lolita é uma recorrência na literatura, vai ceder às tentações e transforma-se em anjo-demônio.
Paralelo a esse eixo central, tivemos à mostra várias relações humanas devastadas. A família de Alex, um tumulto constante, sem afeto, sem comunicação, sem convivência. O pai e madrasta de Arlete-Angel, oportunistas e cruéis, a relação de Anthony com sua mãe (excelente Eva Wilma) pautada no ressentimento, se ampliava para a cama de Fani (Adeus, Dona Neném), entre outras. Relação bela só mesmo a de Hilda e Oswaldo, amizade/amor maduro que renderam cenas ternas e profundas.

O triângulo amoroso sórdido entre filha-marido-mãe alimentou cenas de suspense que nos faz oscilar entre os sentimentos de repulsa, ódio e piedade. O pai se divertia com a Lolita-enteada, (inspirações incestuosas) e humilhava sua mãe (Drica, divina). Creio que as inúmeras sequências de sexo seriam dispensáveis, foram desgastando a trama e perdendo a novidade.

Houve muitos pontos altos na parte técnica. A iluminação com os jogos certeiros de luz e sombra, já que a trama expôs os recônditos humanos, aquilo que se quer esconder, mas acaba aparecendo aqui e ali. Os cenários realistas das trevas da Cracolândia e de tudo que habita naquele reino das sombras, no qual Grazi Massafera triunfou. O figurino sob medida para uma novela enredada nos novelos da moda e da sedução, como os biquínis de croché de Angel.

Voltando ao principal, a tragédia anunciada pela presença constante da arma em cena se concretizou. Angel manchou-se no sangue de sua mãe e no do seu amante, e essa nódoa-culpa a impregnou. Nelson Rodrigues ecoava em muitas cenas, revelando a vida secreta das “famílias decentes”, as verdades inconvenientes vistas pelo buraco da fechadura.

Reconheço valores na trama, mas sinceramente não me arrebatou. Penso que faltou mais ficção, mais fantasia. Entre a vida como ela é, prefiro a vida como ela poderia ser. Mais Chocolate e menos Pimenta, mais Rosas e menos Cravos, por favor, Walcyr...

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Além do Tempo: Mural afresco do século XIX


                                 Além do Tempo: Mural afresco do século XIX

                                                                                                                   Para Elvya Ribeiro

A novela das 18:00 h,  Além do Tempo, de Elizabeth Jhin, revela-se como uma grata surpresa para o público afeito ao gênero de época. Dentre tantos acertos da trama, temos em destaque um sofisticado painel da sociedade brasileira do final do século XIX e inicio do século XX. Uma espécie de mural afresco das relações sociais que marcaram o Brasil finissecular e que ainda ecoam no nosso tempo.

As influências intertextuais pululam em cada capítulo e nos levam ao encontro de obras como Orgulho e Preconceito e Razão e Sensibilidade (Jane Austen), Conde de Monte Cristo e O Homem da Máscara de Ferro (Alexandre Dumas), A Bela e a Fera (conto de fadas tradicional francês), das heroínas românticas de José de Alencar ou, com tintas mais fortes da excepcional série  Downton Abbey, ente outras obras. Para além do enredo romântico, temos com muito vigor uma refinada crítica de costumes da época.

A novela, assim como a série, revelam, simultaneamente, o mundo dos patrões e o mundo dos empregados com lentes microscópicas, mostrando em detalhes todas as nuances dos conflitos de classe, e mais ainda, das relações humanas entre elas. Recentemente, houve um diálogo significativo entre Severa(Dani Barros) e o menino Alex, filho do Conde Felipe(preceptora  e seu tutorado). Ele perguntou se ela sabia tocar piano e ela respondeu que não era coisa para gente de sua classe social. E ele lhe retruca sobre o que era classe social e ela lhe responde: “é o que faz as pessoas diferentes, gente como você e sua família são servidos por gente como eu”. Tal diálogo é uma condensação do modelo social exposto na trama.

As crianças ainda não percebem as diferenças, por isso é tão linda a amizade entre as três, oriundas de três classes diferentes. Felícia não é nobre, é filha de alguém que enriqueceu com o trabalho (traço explorado pela comicidade de sua mãe e irmã que aspiram pela nobreza) e Chico é filho de um ex escravo (com chagas ainda abertas), o elo mais fraco do trio. Entre eles as diferenças são neutralizadas, até que algum adulto apareça para lembrar-lhes.

A casa da Condessa Vitória (altiva Irene Ravache) é um microcosmo do Brasil daquele período com toda sua intricada rede de intrigas e segredos. Há várias escalas hierárquicas em cena entre os empregados, incluindo os agregados (ecos machadianos), status da família da megera Melissa (Paola Oliveira), nobres decadentes e empobrecidos que vivem às custas da Tia e precisam perpetuar os laços através do casamento, e para isso fazem qualquer coisa.

Como o titulo sugere, Além do Tempo, grafado entre duas linhas infinitas, está o amor que resiste ao tempo e as armadilhas da vida e das convenções sociais. Assim é com Bernardo (Felipe Camargo) e Alegra (Ana Beatriz Nogueira), com Raul (Val Perré) e Gema(Louise Cardoso) e será também com Lívia(Alinne Moraes) e Felipe(Rafael Cardoso). Temos ainda um elemento mágico que confere uma dose de beleza extra na trama, o Anjo Ariel (Michel Melamed), velando e interferindo nos destinos das personagens. O simples cocheiro tem o poder de conduzir para o caminho do bem.

A sinopse da novela indica que a história avançará para o presente, mostrando as mesmas personagens numa reencarnação posterior e vivendo os mesmos conflitos, pois, com inspiração espiritualista, só o amor e o perdão poderiam os libertá-las desse ciclo. Confesso que dispensaria essa segunda fase, as narrativas de época nos levam para um encontro prazeroso e incômodo com o nosso passado, mas está tão belo que gostaria que ficássemos por lá ao som de Cartola e suas rosas...