Para Fabíola Vilas Boas e seu amor à leitura
Há
um ditado africano que diz que é preciso toda uma aldeia para educar uma
criança. Na série Anne com E, a
protagonista inverte essa lição ancestral, ela é uma criança que educa toda uma
aldeia. Anne with an E é uma série
de televisão canadense baseada no livro de 1908, Anne de Green Gables, de Lucy
Maud Montgomery e adaptada pela escritora e produtora vencedora do Emmy, Moira
Walley-Beckett, que agora é exibida pela Netflix com grande sucesso de público.
Eu,
ainda resistente ao tempo das séries, dediquei algumas ávidas horas para
assistir a essa genial história da menina ruiva e sardenta que se ainda não
roubou, roubará seu coração. O drama das órfãs é um tema comum na literatura e
no cinema quem não se lembra de Poliana, de Heide ou de outra Annie, filme de sucesso
nos anos 80? Despertando sempre nossa compaixão, o sofrimento delas é
mitigado por doses de fofura e sabedoria, sabedoria que vai transformando a
todos à sua volta.
Com
nossa Anne Shirley não é diferente, mas então o que ela tem de tão especial? A
história muito bem construída em três temporadas (até então, tomara venham
outras) aproxima-se dos romances de formação, cobre um período da vida de Anne
que vai do final da infância, inicio da adolescência e começo da vida adulta. Além disso, mistura muitos gêneros narrativos tais como aventura, romance, suspense e filme de época ao contar as várias fases de Anne, eixo absolutamente central da trama. Infância sofrida entre um orfanato sombrio e passagens por algumas famílias que
exploravam seus serviços sem piedade. Começo da adolescência já com sua nova
família, onde enfim depois de muitas provas tem um lar e um nome ao lado de
dois velhos irmãos taciturnos que vão se colorindo com a sua radiante presença
e o nascer de uma jovem adulta, universitária e amada por seu cavalheiro
Gilbert (com ares de Huckleberry Finn).
O
aprendizado doloroso da infância talvez seja um dos pontos altos da série e que
dá notas de drama a algumas partes da narrativa. Narrado em flashbacks, ficamos
sabendo de todo sofrimento da menina até os 12 anos, entre rejeições múltiplas
no orfanato e maus-tratos nas famílias “adotivas”. O único aspecto luminoso
dessa fase são os livros que lê. Como uma náufraga ela se agarra às histórias e
passa a habitá-las e nutre um sentimento afetivo pelas palavras. Tal prática
leitora será o diferencial de toda sua vida posterior. Muito além de uma leitura
meramente decodificadora (alfabetização), ela alcança aquilo que chamamos de
letramento, ao dar significado a tudo que lê (ter lido um manual de incêndio
faz com que ela salve uma família das chamas) e, o mais importante, traz a
fantasia para dar brilho para sua vida sofrida, preenche os espaços da falta
com a magia da imaginação.
Outro
ponto alto da trama é o desenvolvimento das personagens, todas têm espaço na
série. Do seu núcleo familiar formado pelos irmãos solteirões e reservados, à
vizinha bisbilhoteira, aos vizinhos ricos, todos carregam complexidade e
ambiguidade. Todavia é na escola que o palco da galeria humana melhor se
apresenta, ali todos os tipos sociais sentam naquelas cadeiras, como numa
espécie de microcosmo da sociedade. Há um desfile de meninos e meninas com
todas as nuances possíveis de comportamento que vai do abjeto ao sublime. Além
dos dois professores que passam pela classe. Um puro vício, outra pura virtude. Um que estagna e persegue,
outra que educa e transforma.
Não
podemos deixar de mencionar os aspectos sociais presentes na trama que se passa
no interior do Canadá no século XIX. Destaquemos aí o preconceito racial na
figura de Bash (personagem gigante), o sócio de Gilbert, a colonização dos
índios muito bem representada pelo drama da escolarização da pequena indígena e
do sofrimento de sua família. Além de muitos outros temas que povoam a tela
como a homoafetividade de Tia Josephine e do jovem Cole, almas que se encontram
através da amizade de Anne. A ambição que faz com todos fiquem cegos pelo ouro
de tolo e mais uma vez salvos pelas astúcias de nossa menina que não aprendeu
só com os livros, mas muito também com as experiências da vida, absorvendo cada
lição.
Além
disso, a série nos reserva cenas belas e fortes como a da amizade de Anne e
Diana (o chá delas é um espetáculo), a despedida da esposa de Bash, a
descoberta das origens de Anne, o amor de Mathew, as festas na casa de
Josephine, as mudanças na vida dos alunos, o jornal da escola, as reuniões das
senhoras dentre tantas outras passagens que merecem nossa atenção.
Segundo
Anne, com E, e a repetição do seu nome é uma forma de afirmar sua identidade
sempre em perigo, “Grandes palavras são necessárias para expressar grandes
ideias”, vou parando por aqui porque acho que não há palavras para descrever
essa série incontornável, antes de tudo uma história de amor aos livros, uma
história de amor à vida...Uma bela pedida para esses tempos de quarentena...