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sexta-feira, 27 de março de 2020

Éramos Seis: Um sopro novo na casa da Avenida Angélica

                                                                        Para Aleilton Fonseca e seu amor à boa ficção...

O romance Éramos Seis, de Maria José Dupré, entra para a história da literatura e teledramaturgia brasileira (incluindo uma radionovela) como o livro que sofreu mais adaptações para a televisão. A vida de Dona Lola e sua família foi novamente reescrita para essa nova versão que hoje se findou poeticamente no horário das 18:00h. O romance publicado pela primeira  vez em 1942 conta a história de uma família e sua casa na capital paulista durante 28 anos, entre 1914 e 1942, período compreendido entre as duas Grandes Guerras e suas mudanças sociais vertiginosas. Meu primeiro contato com o livro foi através de sua publicação pela Série Vaga-Lume nos anos 80. Hoje acho que foi uma erro sua inclusão nessa coleção, pois não se trata de um livro juvenil, mas que bom que muitos jovens o leram...
No romance vale destacar o protagonismo da casa, que ganha estatuto de personagem, elemento ressaltado na abertura da novela. Durante anos a família de Júlio e Lola luta para quitar aquela casa, sonho alimentado por anos e objeto de muita discussão e desavença entre o casal. Sacrifícios imensos foram feitos para o pagamento da mesma, só concretizado após a morte do pai e de Carlos, o sangue desse foi parte do pagamento final.
O remake atual, escrito por Ângela Chaves, trouxe muitas novidades para os habitantes da casa da Avenida Angélica, para seus vizinhos, agregados e todos os núcleos da trama. A autora ampliou vários núcleos, costurou temas novos como feminismo, racismo, arte-terapia e desenvolveu com densidade personagens que apenas foram citados no livro ou criou mais figuras e histórias paralelas que enriqueceram a narrativa. A exemplo de Zeca,  marido de Olga, que é construído de leve no livro e foi ampliando de forma incrível na tela com o talento de Eduardo Sterblitch e sua amada, a excelente Maria Eduarda de Carvalho, rendendo belas cenas de humor e amor em Piratininga. Aliás o sítio cresceu bastante nessa versão com  as peraltices das crianças,  a passagem de Justina e as graças de Tia Candoca (maravilhosa Camila Amado) que ganhou ao final dois prêmios: um namorado  e um batom vermelho.
Creio que o mais interessante nessa versão foi a possibilidade de reescrever outros finais, inclusive com a presença de três Lolas em cena (Glória Pires, Irene Ravache e Nicete Bruno) levando em consideração a potência do nosso tempo. O final feliz de Lola ao lado de Afonso foi tecido com as tintas da delicadeza de um amor maduro que teve a paciência da espera e da compreensão como ingredientes, simbolizada pela Carta de São Paulo aos Corintos na cerimônia do casamento.  Foi bonito ver os dois juntos, pensando por um momento na felicidade deles antes das dos filhos. Outro final reescrito com belas tintas foi o de Clotilde, tão sofrida no romance, teve sua felicidade reescrita ao lado do Sr. Almeida.. Além do sucesso de Durvalina como Cantora do Rádio e o encontro com seu filho.
A novela ainda foi muito feliz em trazer para trama novos olhares para as discussões políticas e sociais que permearam a novela através de vários fatos históricos que atravessam a vida dos personagens. Tivemos nessa última semana a prisão de Lúcio (Jhona Burjack, revelação de jovem ator num papel de muita dignidade) numa manifestação que homenageava Rosa de Luxemburgo, tal cena foi motivo para trazer à tona termos como Liberdade de Expressão, Comunismo, Fascismo, palavras que voltaram ao nosso palco, infelizmente em arenas  de bipolaridade feroz, dentre outros momentos que o texto sutilmente dialogava com o calor da hora de hoje.
O capítulo final foi de uma beleza ímpar, todos irmanados na Ceia de Natal na casa de Dona Lola, que novamente voltou às suas mãos. Em lugar da solidão do romance onde Éramos Seis e só restava ela e suas lembranças melancólicas, a novela nos brindou com um Éramos Muitos em torno da mesa, alimentando nossa esperança por dias melhores junto aos nossos afetos nos deliciando com as rabanadas douradas...



domingo, 1 de março de 2020

Por Amor de mãe: para além do maniqueísmo


                              

A novela Amor de mãe tem arrebatado um público ainda fiel ao gênero folhetinesco e alavancado a audiência do horário já não tão nobre assim, mas ainda muito respeitado pelos telespectadores. Com as mudanças ocasionadas pelas redes sociais, já não precisamos esperar o dia seguinte para nas rodas de conversa no trabalho, nas filas do supermercado ou no transporte público  ouvir o que se comenta sobre o capítulo do dia anterior. Agora em tempo real, através da chamada “segunda tela” ou da “social tv” já sabemos o termômetro do capítulo no calor da hora, sejam nos grupos de watts app, sejam nos memes que inundam as redes dentre outros mecanismos do nosso tempo “esquizosimultâneo”, no qual nunca fazemos uma coisa só.

Todavia, para além das formas de partilha da contemporaneidade, o que gostamos mesmo, desde tempos imemoriais, é de uma boa história, com personagens instigantes e cenas que nos emocionam e nesse quesito Amor de mãe tem se destacado positivamente. O sucesso de uma personagem, faz com que ela vire metonímia da novela, assim foi um dia com a novela de Catarina, a novela de Carminha, a novela de Félix e agora com a novela de Lurdes. Lurdes, uma espécie de mãe de todos nós, tem roubado todas as cenas da trama e transitado em praticamente todos os núcleos. A sua força é incrível. Seu texto, caracterização e gestual nos faz morrer de amor por ela, aliás a direção de arte da novela merece prêmio, creio que nunca uma casa de pobre foi tão bem detalhada como a de Lurdes (em eterna obra e feita de remendos com seus objetos que são a cara de um Brasil que muitos conhecem bem).

Voltando ao tema central da novela, o amor incondicional das mães, temos muitas nuances em cena. Há limites para esse amor que beira o maquiavelismo como o de Telma com seus segredos inconfessáveis? Lurdes para ser uma boa mãe para seus filhos deixou para traz a sua mãe, aceitamos? Abandonar um bebê por não poder criá-lo imaginando que terá melhor sorte como a mãe de Camila é compreensível?

Não devemos julgar moralmente a literatura, sim novela é literatura em outro suporte, nos cabe compreender que aquilo é plausível na trama (necessidade de verossimilhança) e a trama é muito bem costurada, aliás todos fios se cruzam na vida das três protagonistas e o tapete é tão bem tecido que dá espaço para todas as personagens secundárias também crescerem e figurarem no grande painel. Penha (que virada) é um grande exemplo disso, ela mesma essa semana em conversa com Magno disse que todos têm seus erros, sem falar do vilão ambíguo e carismático, Álvaro da Nóbrega, que manda matar, chora de amor e ouve ópera.

Nessa semana o epicentro das emoções ficou em torno da volta de Lurdes à Malaquitas para reencontrar sua mãe. Cenas com misto de riso e lágrimas nos brindaram com belas sequências que nos remetem ao estilo da direção de Luiz Fernando Carvalho e das tramas de Benedito Rui Barbosa. A escolha de Zezita Matos como mãe de Regina Casé foi muito feliz (Lurdes podia mesmo ter sido personagem de Velho Chico e irmã de Bento e Santo dos Anjos) e o abraço  das três, avó, mãe e filha foi um quadro de puro lirismo, assim como a morte da matriarca carregada de poesia.

 As três passeando por aqueles caminhos que deram inÍcio à trama, metáfora da origem, só podia dar em outro segredo, a mãe biológica de Camila, que brotou daquele cenário portando revelações que darão continuidade à história. Dona Maria Santos Silva, que outro nome podia ser, falou nessa sequência ao ar livre uma frase lapidar: O impossível acontece todos os dias... Justamente quando a mãe de Camila passava numa carroça, volta ao principio, mais mítico impossível...

Já que nos lembramos de Benedito Rui Barbosa, creio que Manuela Dias também prestou um tributo a Manoel Carlos, o segredo vive nas gavetas, nas cartas e nos diários... Danilo ao arrumar o quarto do seu futuro filho, esbarra com o mistério que rege sua vida e mudará o rumo da novela...para não dizer que não falei de Vitória, personagem que adoro, mãe leoa daquelas com três maternidades em processo, tenho uma queixa  a fazer, ela ficou pobre demais, demais mesmo, não tinha nem uma reservinha, só a casa linda e o closet de sex and city? Uma advogada daquelas ia cair nas mãos de Penha a 25%? Bem botamos na conta do desespero...

São muitas as faces dos amores de mãe, esse sentimento prismático, mas os amores de pai também tem de revelado em Magno,  em Raul, em Davi, em Seu Nuno e no grande Durval, só não conte a ele que não sabe guardar nada....Sigamos! Muitos outros segredos ainda virão à tona nessas  outras páginas da vida...

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Bom Sucesso: Um brinde à literatura e à vida


                                                                                                 Para Lícia Soares de Souza


A relação da telenovela com a literatura é simbiótica desde seu surgimento. A sua origem remonta aos folhetins publicados nos rodapés dos jornais no século XIX. As primeiras tramas exibidas foram adaptações dos clássicos brasileiros (Senhora, A moreninha, A Sucessora dentre outros). Depois passamos para algumas livres inspirações, a exemplo de Fera Ferida, pautada na obra de Lima Barreto, as muitas tramas ligadas aos romances de Jorge Amado (Tieta, Porto dos milagres) ou inspiradas no Romance de 30 (Renascer, Velho Chico). Nos últimos anos, algumas obras têm adotado cada vez mais o processo de citação direta ou indireta, trabalhando a intertextualidade (“todo texto é um mosaico de citações” Kristeva, 1974) em todas as suas infinitas possibilidades. Estratégia criativa elevada à máxima potência em Bom Sucesso, que se finda, infelizmente como todo livro, essa semana, mas continuará ecoando em seus leitores.
Os autores, Paulo Halm e Rosane Svartman, e seus roteiristas igualmente talentosos e certamente bons leitores, investiram com força nesse profícuo diálogo entre os textos de todas as cores, gêneros, nacionalidades e épocas. A novela acolheu inúmeros repertórios culturais, do rap a Cyrano de Bergerac, de Vinicius de Moraes a Fernando Pessoa, da Letra Escarlate a Drummond, do Carnaval à Ópera, dando ênfase a algumas obras-chaves que funcionavam como molas propulsoras da trama, Dom Quixote, Alice no país das maravilhas e Peter Pan, espécies de alter egos dos protagonistas.
A literatura costurou toda a trama, cujo um dos protagonistas, Alberto Prado Monteiro, é um bibliófilo, vivido com toda a maestria por Antônio Fagundes, dono de uma editora em crise financeira, retrato do nosso mercado editorial invadido por celebridades e youtubers. A presença dos textos se corporifica na trama e se enreda na vida das personagens, seja nos devaneios de Paloma a cada nova leitura, seja na tropa de funcionários do Capitão (Captain, my captain) em suas investigações e peripécias a la Sherlock Holmes ou no Satanás Burlesco que se transformou o vilão Diogo.
Nesses últimos capítulos, os diálogos se intensificaram e se tornaram ainda mais sofisticados e belos. O incêndio na editora foi antecipado pela leitura dramática de Farenheit 451 de Ray Bradbury, obra distópica e utópica a um só tempo, que ganhou vida na voz de Fagundes ao passo que as chamas consumiam os livros. Após o fogo, um momento de rara sensibilidade foi encenado sobre as cinzas. Assim como no conto americano, cada personagem escolheu uma obra (com ligação especial com cada papel interpretado) para guardar na memória, espaço no qual estaria protegida para sempre de qualquer tirania, fogo, guerra ou ditadores, e tal como fênix ressurgiram dos escombros. Vale ressaltar nessa sequência, a morte de Gisele e o réquiem cantado para ela por seu amigo William, a emblemática Geni, de Chico Buarque.
A história construída sobre o lastro forte dos livros é também uma ode à vida com suas grandezas e pequenezas, sobretudo, uma acurada reflexão sobre a morte e o tempo através da doença terminal do Seu Alberto. Estamos aguardando o seu grand finale com ansiedade, pois já podemos imaginar a beleza que virá em seu último ato, epílogo de todos nós. A trama revigorou com beleza ímpar o horário das 19, não só pela presença da literatura e do estímulo ao letramento literário dos telespectadores, mas pela vida que pulsa no riso e choro humano, seja nas ruas de Bonsucesso, seja nos corredores das mansões solitárias. Avante, Quixotes de todos os lugares! A novela e a vida nos mostra que a literatura e a arte não cura nossas dores, mas ajuda a suportá-las! Contar e ouvir boas histórias continuará fascinando os homens de todos os tempos, era uma vez, e outra e outra...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Dois Papas, Dois Homens: Confissões sem gelosia


                                                                         Para Mirella Márcia Lima




O filme Dois Papas estreou dia 20-12-2019 como um presente de Natal para os amantes das boas histórias. Dirigido pelo nosso talentoso Fernando Meirelles, com roteiro de Anthony McCarten e atuações impecáveis de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce nos papéis que nomeiam a trama e protagonizam toda a narrativa, Papa Bento XVI e Papa Francisco.
Em 2012, na Argentina, o então cardial Jorge Bergoglio está decidido a se aposentar das suas funções e solicita um encontro com o Papa Bento no Vaticano para concretizar seu desejo. Já de passagem comprada sem saber se seria recebido ou não, ele recebe um convite do Sumo Pontífice, que depois será interpretado com um sinal divino. Ao chegar ao Vaticano, seu pedido é rejeitado pelo seu superior sem uma explicação plausível, nem sequer imaginaria ele a razão do chamado. Após longas conversas, Bento lhe revela o seu plano de renunciar ao papado e sua intenção de deixá-lo em seu lugar.
São exatamente essas longas conversas e os muitos silêncios que constituem toda a estrutura e beleza do filme. Esses dois homens tão diferentes vão travar longos diálogos (ora monólogos) que faz com que nos adentremos no íntimo de cada um deles, conhecendo seus vícios e virtudes, seus anjos e demônios, dois homens de carne  e osso e dúvidas. Sim, a trama tem um quê de maniqueísmo, pendendo a princípio o pêndulo do bem para Francisco. Todavia, na medida em que a trama se desenvolve, veremos que os dois andaram pelas sombras do vale da morte e que temos em cena duas figuras humanas densas que vão aprendendo um com o outro, pois assim como nas confissões, um dos eixos da história é o exercício da escuta.
As conversas e os silêncios vão ganhando o tom de confissões, de segredos sussurrados, e em alguns momentos um irá absolver o outro de seus pecados, pois ambos são atormentados por palavras, ações e omissões. Bento, a questão problemática da pedofilia. Francisco, os fantasmas da ditadura argentina. Aliás, as cenas em flashback cinzentos desse período são um dos pontos mais altos do filme juntamente com a fala amargurada do ainda Cardial que ousa questionar: “-Onde Deus estava durante a Ditadura da Argentina?”, eco da mesma frase proferida pelo Papa Bento quando visitou o Museu do Holocausto, ambas falas ecos de "Pai, por que me abandonaste?"...
Destaque-se também no filme, os bastidores políticos das eleições dos Papas (Habemus Papam!), o papel da imprensa, a trilha sonora, o futebol de um, a série do outro, as imagens imponentes do Vaticano em contraste com a realidade vivida por Jorge Bergoglio que fez a opção de viver entre os humildes e ser igualmente humilde, enquanto o outro prefere a distância e a solidão ao convívio com seus subalternos e fiéis.. A cena das malas, dos sapatos e dos trajes em sua posse é simbólica de sua opção, bem como a refeição solitária e a introspecção apontam para a natureza de Bento. Metáforas de duas linhagens de poder em jogo, jogo simbólico entre Alemanha e Argentina, jogo entre um Cristo no altar e um Cristo nas ruas junto aos povo. Parece haver um tabuleiro invisível entre esses dois homens que disputam entre si os rumos do catolicismo e de suas vidas. Vale também notar, que esse drama histórico bibliográfico reserva algumas cenas de rara beleza que tocam de leve o humor, a exemplo do momento da pizza com Fanta, da final da Copa do Mundo ou do glorioso Tango na despedida.
Nós vivemos um momento histórico único, vimos um Papa renunciar, para outro Papa assumir, portanto, assistimos a Dois Papas vivos. E agora temos a chance de ver essa história real ser retratada pelas tintas da ficção com tamanho cuidado estético e vigoroso diálogo com o real que nos põe contritos diante da magia da arte. Bem como estamos vendo, sob a égide de Francisco, a Igreja ganhar sopro novo. 
Habemus Papam Pop e por mim também Habemus Oscar! Amém!


domingo, 1 de dezembro de 2019

Amor de mãe ou o Rio de Janeiro para além dos cartões postais




Amor de Mãe estreou essa semana como grande promessa de restabelecer a qualidade narrativa do horário das 21:00h, depois de duas tramas que deixaram  a desejar (o gato miou e o bolo solou). Esse é o horário nobre da telenovela por excelência,  aquele que reúne milhões de pessoas em torno da tela para apreciar sua dose diária de ficção. Da autoria de Manuela Dias, inaugurando sua primeira novela depois de séries excepcionais como Justiça e Ligações Perigosas, aliás, o tom da primeira se faz presente com força na novela. Os primeiros capítulos cumpriram a expectativa e foram arrebatadores!

O tema escolhido, Amor de mãe, é universal e atemporal, atinge a todos de variadas formas. Será trabalhado a partir de três protagonistas, Lurdes, Telma e Vitória. Mulheres de classes sociais diferentes, mundos diferentes, mas que se unem no drama individual e coletivo do amor incondicional aos seus filhos. É interessante notar o cruzamento da tríade, como a trama conduz a ligação entre elas. Todas Mães-coragem (Brecht, a carroça) lutando pela felicidade de seus filhos, todas personagens ambíguas que borram o maniqueísmo tradicional. Embora sejam 3 protagonistas, Lurdes parece ser o fio condutor para a história. Regina Casé está brilhante no papel que alude a outras personagens já interpretadas por ela no cinema (Darlene de Eu, tu e eles e Val de Que horas ela volta?), traz consigo a força do drama, mas com aquelas notas precisas de comédia ( a cena do dinheiro na praia, a desconfiança à primeira vista de Raul) que nos fazem chorar e rir e torcer por ela, mesmo quando a linha da ética oscila em nome da proteção das crias.

Em pouco tempo já tivemos contato com cenas magistrais, como a reação de Lurdes ao descobrir  a venda do seu filho, a perda do bebê de Vitória e o discurso de formatura de Camila, professora de História, personagem simbólica pelo papel que ocupa e pelo momento atribulado que vivemos, e suas primeiras aulas em uma escola pública tendo que enfrentar a realidade dura de estrutura precária,  de alunos desmotivados e  de uma rajada de tiros, mas mesmo assim ela cantou e segue em frente e segura o rojão, podia perfeitamente ser uma cena de Segunda Chamada.

Vale destacar que a novela, na minha leitura, não tem três protagonistas, mas sim quatro. A quarta é a cidade do Rio de Janeiro com toda sua rede intricada de espaços e paisagens que os cartões-postais não mostram. Observem como há cenas externas, nas quais as ruas e suas figuras ganham vida sejam nos becos, sejam nos ônibus, sejam nas avenidas da Zona Sul. A trama traz uma geografia social externa e interna, mostra espaços abertos e o interior das casas, sejam nas mansões e ilhas ou nas casas inacabadas e apartamentos populares. E esses lugares determinam muito do tom de cada núcleo (a solidão de Lídia em sua mesa gigante e  corredores de sua mansão, a união da família de Lurdes em sua cozinha apertada onde todos se encontram todo tempo, o velho restaurante e a velha casa de Telma e seu apego ao passado). O espaço adquire feição de personagem e dialoga com a narrativa.

Muitos pontos altos merecem nota, a escalação de atores, o texto, os flashbacks sofisticados, o ritmo rápido,  a película de cinema, a tensão constante,  a trilha sonora diversa e escolhida com primor (de Fábio Junior a Aznavour passando por Bethânia e Gonzaguinha e cia, É foi também trilha de Vale Tudo!), os cenários, os intertextos (Gabriela contemporânea tira drone do telhado). Como foi já veiculado em entrevistas, na trama não há grandes vilões, a vilania está na própria vida com suas agruras diárias, há algumas personagens que encarnam o mal em algumas ações como Sinézio, Vera, ou o empresário ambicioso (Irandhir surpreendendo em um papel que nunca fez) mas que não chegam a serem os grandes opositores, essa estratégia traz um sopro novo para a teledramaturgia, assim como o fato de não termos um par romântico no centro do enredo.  É a vida, o destino e as condições sociais que costuram o bem  e o mal e as dores e delícias...De ser mãe e de ser humano... Sigamos com fé que  a gente não pode deixar de sonhar !!!




segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Segunda chamada: As veias abertas da educação noturna


A série Segunda chamada, de Carla Faour e Julia Spadaccini, com direção de Joana Jabace, tem roubado nosso sono nas noites de terça-feira na Rede Globo de Televisão. Considerada pela crítica como a Sob Pressão da educação, por abordar de forma semelhante as mazelas da escola pública assim como aquela o faz com a rotina de um hospital igualmente feito para o povo. Comparação deveras pertinente, pois ambas são pautadas no realismo crítico e contundente do cotidiano do nosso país através das problemáticas dessas instituições tão fundamentais quanto maltratadas ao longo dos anos.

A grande força da série fundamenta-se na construção dramática de suas personagens, aliás, uma refinada construção de criaturas complexas. Cada professor e cada aluno lutam com seus demônios individuais antes de cruzar o portão da escola e os levam para dentro dela, onde duelam com outros tantos demônios coletivos. Em cada face, um drama em chaga aberta e um sorriso tímido, com um desejo único de fazer com que aquele espaço funcione. Apesar de tudo, todos depositam alguma nota de esperança naquele prédio em decomposição, mas com sonhos pulsando. Lúcia, a professora de português, personagem de Débora Bloch, é um exemplo desse tumulto entre o individual e o coletivo. A atriz está excelente nesse papel que parece ser talhado para ela, desde Justiça e Onde nascem os fortes vem se destacado no drama.

A classe noturna é composta por uma gama de alunos variados, adultos de todas as idades que pelos espinhos do caminho não seguiram a cronologia esperada e voltam para essa escola com todas as marcas da vida e os sonhos contornados pelo mundo que lhes é possível (posso atestar de cátedra a verossimilhança dessa série, já fui professora desse turno). Creio que toda sala de aula é um microcosmo da sociedade e aqui não é diferente. Dentre tantos rostos cansados, temos a jovem mãe com um bebê e o desespero nos braços, o motoboy correria, a garota de programa, a senhorinha católica (Teca Pereira, ainda quero te ver em grande papel), a transexual, o catador de lixo (José Dumont, hors concours, nosso eterno Severino), o filho do diretor que leva bomba na escola particular, o pequeno traficante, dentre outros tipos tão bem representados nessa caderneta viva.

Na sala dos professores, os dramas humanos também se impõem com força. Temos a professora muambeira buscando driblar os baixos salários (Thalita Carauta, mostra que pode ir muito além da comédia), uma figura muito conhecida nas salas dos professores, a mal casada (Hermila Guedes, brilha desde O céu de Suely) que traz seu rancor para a escola, o jovem professor de artes testando seus limites (Sílvio Guindane, também rompendo o humor) e o diretor dividido (Paulo Gorgulho, seja bem-vindo de novo) entre a aplicação da lei e o bom-senso dentro desse caldeirão multicultural que ameaça explodir toda semana.
É interessante notar como os conteúdos das aulas são cuidadosamente trabalhados em consonância com os acontecimentos extraclasse (os roteiristas tirando dez!). Na aula de matemática, a professora ensina divisão mostrando o valor do salário mínimo e acentuando quanto custa um dia de trabalho do assalariado. Na aula de História, a lição é sobre as Capitanias Hereditárias, justamente numa noite na qual a escola estava alagada pela chuva e os professores e os alunos lutando para conseguir um mínimo de espaço para as aulas acontecerem, excelente metáfora da luta cotidiana de todos ali buscando driblar as intempéries e o pouco espaço que lhes sobra. Na aula de artes, o professor que luta para ter suas aulas “inúteis” preservadas, discute O Pagador de Promessas, lição literária sobre a intolerância religiosa que vigora na escola onde uma imagem sacra fora quebrada minutos antes.
Mas para além do currículo oficial, há o currículo oculto no qual aprendemos aquelas lições que valem para toda vida dentro e fora dos muros da escola Carolina Maria de Jesus, nome emblemático por sua obra que deu visibilidade aos excluídos, sendo ela mesma um autora improvável, assim como os alunos dessa escola são cidadãos improváveis em meio a tanta precariedade. Dona Jurema aprendeu a respeitar Natasha (Linn da Quebrada arrasando) e permitir que essa garanta seu espaço e dignidade como mulher trans. O casal evangélico fundamentalista foi socorrido na hora do parto pela jovem prostituta que ainda carrega sonhos (Mariana Nunes) e foram tocados pelo afeto dessa mão antes desprezada, dentre tantos preconceitos que se podem ser revistos nas “salas de aula” dessa escola. As lições estão postas, quem tiver olhos para ver que vejam...
Antes de concluir esse nosso dever de casa, não podemos deixar de mencionar a trilha sonora de alta qualidade e com letras completamente espelhadas na trama através de compositores e intérpretes variados (Emicida, Projota, Elza Soares, Gonzaguinha, Belchior...). Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça, afinal esse ano eu morri, mas para o ano eu não morro e Você merece, Vocês merecem assistir à Segunda Chamada...Viva a arte, ela não cura nossas dores, mas ajuda a suportá-las...Educação pública, presente!




sábado, 28 de setembro de 2019

Órfãos da Terra: Uma ode ao amor sem fronteiras





O último capítulo de Órfãos da Terra foi construído através de uma beleza ímpar, todos os desfechos de todas as personagens e núcleos convergiram para um ideal de amor fraterno, de Amor grafado com letra maiúscula. As autoras, Thelma Guedes e Duca Rachid (Sherazades admiráveis) foram muito felizes na escolha de um tema tão contemporâneo e atemporal ao mesmo tempo.  A história da humanidade é feita de êxodos, de travessias, umas por escolhas, mas a maioria pela força bruta da guerra, da miséria e da escravidão.
O tema central da novela das 18:00h, que poderia ser das 21:00h pela sua densidade e atuações de excelência (Paulo Betti, Eliane Giardini, Ana Cecília Costa e cia, além do núcleo jovem e sua liga da justiça), pareceu saltar das telas do noticiário para dentro da ficção e vice-versa, como narrativa clássica tivemos vilões malvados e impiedosos, o Sheik Aziz e sua filha Dalila e mais seu exécrito do mal, em meio a tantas histórias familiares de luta pela sobrevivência e união. Creio que no meio tivemos a famosa barriga, com sequências arrastadas, como os muitos planos malvados de Dalila, mas nada que tirasse a beleza da história.
 Um dos pontos altos da trama foi a convivência entre os árabes e judeus através das famílias de Seu Boris e Seu Mamede, brilhantemente representados por Osmar Prado e Flávio Migliaccio com muitos risos e lágrimas. Na reta final, a questão do Alzheimer de Seu Mamede foi tratada com muita sensibilidade e ele e seu dantes inimigo judeu nos presentearam com cenas lindas de amizade e cuidado, coroada com a cena do nascimento dos gêmeos no último capítulo. Migliaccio brilhou entre o drama e a comédia, tirando partido da sua condição de idoso aparentemente frágil para dar mais força ainda a sua interpretação comovente. O banquete dos mendigos foi uma cena magistral.
O último capítulo reservou generosamente para cada personagem, para cada casal e para cada núcleo, um final especial pautado na ideia de congraçamento. Com muitos casamentos, amores diversos que redimem o mal e bebês à mão cheia, tivemos o trunfo da felicidade tradicional do último capítulo. A cena da preparação do corpo de Dalila também foi muito tocante e até ela teve sua redenção ao experimentar o amor materno por sua Soraia, deu prova desse amor ao deixar a pequena para sua avó criar em um lar de verdade.
O desfile de Martin foi rico em metáforas da vida dos refugiados com os despojos pelo caminho (muitos sapatos perdidos nas estradas, muita poeira pelo caminho), na passarela a vida e a beleza pulsando apesar de tantas perdas. A sede da Ong dirigida com afinco pelo Padre Zoran foi mesmo o palco para tantas vidas que por ali passaram e nada melhor que a música para reger a união entre os povos, a música de abertura é um hino ao tema, vale ressaltar o trabalho dos voluntários nesse projeto, outro símbolo de fraternidade.
A última cena em close para o discurso de Laila, discurso belíssimo que atou todas as personagens da trama nos lembrando de que todos somos em alguma medida também estrangeiros (excelente menção aos nordestinos em São Paulo e aos afrodescendentes) e evocou a vocação do Brasil para a diversidade cultural e tradição em receber todos os povos. Além da força desse discurso, a presença da metalinguagem foi um bônus, ao desligar a câmara, a história continua e Laila e Jamil retornam ao lugar do começo em São Paulo, onde a palavra fim nos aguardava em todas as línguas, sem fronteiras... E por falar em histórias que não acabam, Éramos seis nos espera de novo...

domingo, 8 de setembro de 2019

Bom sucesso da Literatura: Da inserção do livro como personagem e narrador




                                                       Para Flávia Aninger, uma das melhores leitoras que conheço...

A novela Bom Sucesso de Paulo Halm e Rosane Svartman tem se destacado como um agente de letramento poderoso que entra em nossas casas trazendo o benfazejo sopro da arte literária. A cada dia, ao acompanhar a trama que gira em torno da inusitada amizade entre Alberto e Paloma, ganhamos de presente inúmeras referências clássicas da literatura que vão desfilando de forma prazerosa diante dos nossos olhos.

Aliás, sobre a amizade dos protagonistas vale ressaltar a citação a dois filmes magistrais sobre amigos improváveis Vitória e Abdul (amizade entre a Rainha Vitória e seu súdito indiano já no final de sua vida) e Intocáveis (amizade entre o milionário tetraplégico e seu irreverente enfermeiro). Como na novela, os dois mundos distantes se cruzam e ambos aprendem muito sobre o universo do outro e se modificam a partir dessa convivência.

Podemos atribuir à novela dois adjetivos que já ocupam local de força na nossa cultura: Quixotismo e Bovarismo. Tanto no romance de Cervantes como no de Flaubert os protagonistas pautam sua existência a partir da influência de suas leituras, comportamento adotado por Alberto e Paloma e que também se faz presentes em outras personagens (Alice, Luan, Marcos e praticamente todos que trabalham na editora).

A inserção do livro na trama nunca é gratuita, é como se cada citação funcionasse tanto como personagem ou como narrador que antecipam alguns motes da narrativa. Ao ler A Letra Escarlate (Nathaniel Hawthorne, 1850), Paloma sofre o drama da angústia do adultério, evidenciando o dilema que vive entre Ramon e Marcos. Mesmo procedimento com a leitura de Otelo (Shakespeare, 1603), obra-prima sobre o ciúme, ou Dom Casmurro (Machado de Assis, 1899), obra-prima da dúvida, vale ressaltar que Machado de Assis dialoga com Otelo todo tempo no seu magistral romance. Paloma então se vê como Desdêmona e Capitu, vítima do “monstro de olhos verdes”.

A novela traz no centro da narrativa o mercado editorial, através do declínio da tradicional Editora Prado Monteiro (sobrenome que homenageia merecidamente Caio Prado Junior e Monteiro Lobato fundadores da Editora Brasiliense) que não encontra mais espaço para os tipos de livro que publica e precisa se render às biografias das celebridades para seguir de pé.  Uma excelente reflexão sobre os hábitos de leitura dos nossos tempos que consagram os youtubers como fenômenos das redes que migram para os livros. Recomendo olhos atentos para todos que trabalham na editora, dali brotam cenas incríveis com uma interessante diversidade de personagens. 

Ainda vale ressaltar que afora esse universo riquíssimo de referências, Bom Sucesso é uma história gostosa de acompanhar com vários núcleos interessantes como o da Escola Dias Gomes (onde pulsa Esporte, Poesia e Rap, Rhythm and Poetry) e seus dramas comuns ao universo adolescente, com a presença de uma professora que tenta com todas as armas salvar seus alunos, o antagonismo entre o mundo dos ricos e dos pobres todos com seus sofrimentos e alegrias (Nana lendo Cem anos de Solidão para seu pai no hospital foi emocionante), as traições de um vilão malvado, o universo do samba entre outros.  O fato de Paloma ser uma costureira que vai com sua linha e agulha tecendo sua existência entre todos esses universos nos põe encantados e dispostos a seguir acompanhando essa história tão vivificante.

No início da novela, quando Paloma acha que vai morrer pela troca do exame (no laboratório Flaubert), elemento que fez seu mundo se cruzar com o de Alberto, na aula de literatura a professora lia A morte sempre chega  cedo de Fernando Pessoa. Encerro essa nossa conversa com esse belo poema, para nos lembrar que enquanto A indesejada das Gentes não chega devemos iluminar nossa alma com o que há de belo na vida, a literatura é sempre uma boa companheira de jornada:

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.




quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bom sucesso: Uma ode vivificante aos livros



              “ Ver muito e ler muito aviva o engenho do homem.” Miguel de Cervantes

Estreou nessa última semana de julho a nova trama das 19:00h, Bom Sucesso, da autoria da dupla Rosane Svartman e Paulo Halm que já mostraram seu talento  na divertida Totalmente Demais. Os dois primeiros capítulos foram muito bem construídos e nos convidam a continuar acompanhando a trama. Com muita clareza já nos situaram na estrutura do enredo e nas linhas de força das principais personagens.

Os mundos distintos de Paloma (Grazi Massafera, crescendo a cada dia como atriz) e Alberto (o indiscutível Fagundes) irão se cruzar através de um laudo de um exame de sangue trocado. A simples e batalhadora costureira do bairro de Bonsucesso (trocadilho com o título) recebe o diagnóstico fatal que pertence, de fato, ao empresário dono da editora Prado Monteiro. Esse fato inusitado muda a vida dos dois. Ela acha que morrerá em breve, ele se sente revigorado com o falso resultado. Universos completamente diferentes do ponto de vista social se encontrarão através de um erro técnico de leitura, tema que sustenta de forma poética a trama. Todavia, há um ponto de contato entre eles: o amor aos livros.

O enredo, com o comércio editorial como centro, é uma ode à literatura. A protagonista Paloma, embora não tenha conseguido realizar o sonho de cursar uma faculdade, é apaixonada por livros e foge do cotidiano sofrido pelas asas da imaginação forjada pela ficção. Seus três filhos têm nomes de personagens emblemáticos Alice, Gabriela e Peter. Já nesse inicio vimos citações literárias  motivadas pelo enredo contado.

Numa cena inicial, Alberto falou sobre um livro que é uma releitura da Microfísica do Poder de Michel Foucault, trama que discute os meandros sinuosos do poder, uma alusão à situação de sua empresa com a iminência de falência e problemas de sucessão entre os filhos. Em outro momento, ele em discussão com o filho por discordar do seu estilo de vida longe dos negócios, comentam Dom Quixote, e seu filho lê um trecho. O filho quixotesco tenta convencer o pai, Sancho Pança, de suas escolhas.

Paloma para consolar sua filha das desilusões afetivas e por ter se atrasado para o ENEM (tema muito oportuno) retoma Alice no país das maravilhas, obra responsável pelo nome da menina. E adivinhem? A jovem quer cursar Letras! Alice é a representação da possibilidade de viver outros mundos através da imaginação.

 Imaginação que guiará Paloma numa cena linda de volta ao passado para tentar corrigir seu erro de dezessete anos atrás. A mulher de hoje aconselha a menina de ontem, momento de raro lirismo com uma iluminação belíssima. Encontro só possível para quem sabe ouvir estrelas...

Vale notar também o alarme falso da gravidez de Alice, que ainda bem só durou algumas horas. Tudo não passou de um erro de leitura das benditas listrinhas azuis, identificadas pelo curioso Peter. Ainda é muito cedo, mas  recebo com imensa alegria essa novela que escolheu trazer para os holofotes o universo dos livros, e como os bons livros q nos pegam logo pelo começo, acho que não será um erro de leitura.

P.S. Os autores trabalharam muito bem as referências literárias em Totalmente Demais, sejam bem-vindos de novo!





sábado, 1 de junho de 2019

Cine Holliúdy: Uma série ispilicute


O adjetivo ispilicuti, termo cearecês para caracterizar algo como bom, bonito ou curioso e animado, enfim um elogio dos bons, é derivado da expressão inglesa “is pretty cut”. Tal termo já foi repetido algumas vezes por Francisgleydsson (Edmilson Filho), protagonista da série Cine Holliúdy, e parece captar o sentido desse divertido programa, traduzir para o interior do Ceará os grandes gêneros do cinema americano em meio a muito humor.
Baseada no filme homônimo de Halder Gomes, a série de Marcio Wilson e Claudio Paiva, dá continuidade ao tema dos filmes (1 e 2) e expande as discussões apresentadas na telona, agora adaptadas para as telinhas (às terças na Rede Globo e qualquer dia e hora no Globoplay), criando mais personagens para agitar a fictícia Pitombas, cidade no interior do Ceará.
A história central gira em torno da chegada da Televisão nos anos setenta e a sua concorrência desleal com o cinema da cidade já em decadência, mas administrado com todo afinco por Francysgleydsson, um idealista nato, e seu quebra-faca full time, Munízio (Haroldo Guimarães). Aterrorizados pela TV instalada na praça pública, que faz a sua clientela sumir, eles resolvem criar seus próprios filmes made in Pitombas e para isso não medem esforços e envolvem toda a cidade na sua empreitada, a começar por Marylin (Letícia Colin), a mocinha da cidade, musa romântica do seu projeto e dona do coração de Francis, afinal o amor é o grande tema da telona e das telinhas desde sempre.
Pitombas é a típica cidade do interior do Nordeste com seus personagens-tipo, o prefeito corrupto a la Odorico Paraguaçu com seu discurso cheio de nove-horas ( o grande Matheus Nachtergaele), a primeira-dama espevitada (a cômica Heloísa Perissé), o padre vaidoso (Cacá Carvalho, inesquecível Jamanta), o delegado frouxo (Brilhante Frank Menezes com sua peruca), o casal de comerciantes atrapalhados (Carri Costa e Solange Teixeira, Dona Belinha revelação), além do secretário do prefeito, a la Dirceu Borboleta( Gustavo Falcão)  e grande elenco de coadjuvantes a cada episódio. Sim, porque a cada semana temos um novo episódio da série e um novo filme a ser feito e exibido no Cine Holliúdy.
Sob as luzes da ribalta de Cinema Paradiso, Lisbela e o prisioneiro, A rosa Púrpura do Cairo e muitas outras fitas que, metalinguisticamente, trazem a sétima arte como tema, a série tem sido um sucesso de bilheteria e nos faz rir toda semana. Além dos títulos citados, podemos ver ecos de O auto da Compadecida, O Bem-Amado e O coronel e o lobisomem dentre outros no que tange à representação do Nordeste.
É interessante notar que temos uma espécie de espelhamento do filme que está sendo construído por Francis e os acontecimentos que se desenrolam na cidade, como no filme de terror sobre a “noiva cadáver” e o fantasma da primeira mulher do prefeito que volta para lhe assustar ( Ingrid Guimarães). Assim, temos filme novo no cinema e história nova na cidade toda santa semana, com destaque para A paixão de Cristo e sua tradução cearense (“ Oh, painho, por que me abondaste, macho”), episódio que considero o melhor, com direito ao padre no papel de Deus e a cidade toda assistindo e dando palpites sobre a maior história de todas.
A construção dos detalhes é muito arretada. A narração fabulosa de Falcão (a tradição do cego que tudo vê vem de priscas eras), os figurinos e penteados, os cartazes do cinema, o visual do bar, os sotaques, a seleção de elenco que mescla atores conhecidos nacionalmente com atores nordestinos, a trilha sonora bem raiz e todo trabalho da direção de arte merecem elogios.
Cine Holliúdy é mesmo um programa ispilicute, com gosto de drops e rapadura, pipoca e quebra-queixo! E não se avexe, Francisgleydsson, o Cinema morre é nunca e  a Televisão acaba pongando nele, macho!



domingo, 26 de maio de 2019

A dona do pedaço: Uma receita de sucesso


Existem poucas histórias, é a maneira de contá-las que faz a diferença” Daniel Filho

A epígrafe que abre este texto, da autoria do ator diretor Daniel Filho, um dos grandes nomes da televisão do Brasil, expressa as minhas primeiras impressões sobre A dona do Pedaço, novela de Walcyr Carrasco com direção acurada de Amora Mautner, que estreou trazendo sabor novo ao horário nobre. Ele que é um chef em misturas exitosas como Chocolate com pimenta, parece que nos brindará com outro cardápio saboroso.
Estruturada nos elementos centrais do folhetim e do melodrama, a novela trata de amores impossíveis, famílias rivais, crianças perdidas, mocinha virtuosa, vale de lágrimas, segredos guardados, dentre outros fios tradicionais da telenovela. Temas que já vimos em tantas outras tramas nas telas e nos livros, mas ainda são capazes de nos comover e nos por diante da televisão (ou do smartphone, em tempos de segunda tela) a torcer pela felicidade de Maria da Paz. Como na frase de Daniel Filho, é a forma de contar que nos põe entusiasmados a assistir a mesma história contada de outra maneira. Os ingredientes do bolo parecem conhecidos, mas a forma de misturá-los e a apresentação da receita faz o já visto parecer novo diante de nós. E lá estamos a degustar nossa fatia diária...
A novela iniciou com muita força e repleta de simbologias. Numa espécie de lugar perdido no Brasil profundo, Rio Vermelho, duas famílias de pistoleiros rivais vivem em eterna disputa, onde cada morte é vingada seguindo a Lei de Talião. De um lado, os Mateus, do outro, os Ramires (remete aos Badarós e aos Silveira de Terras do Sem Fim de Jorge Amado), e para desequilibrar essa eterna guerra de sangue, brota o amor de Maria da Paz e Amadeu (nomes motivados, trazem a aliança em seus significados).
 Um amor que nasce na natureza, longe da cultura e das convenções, ele a salva do galope do cavalo, lhe dá água, ela lhe dá seu corpo e sua alma. Vale destacar, no campo dos símbolos, tendo no centro o sangue, a cena na qual a matriarca (Fernanda Montenegro, não há adjetivos para te louvar) treina as crianças atirando nas chamas das velas, metáfora da vida. Só Maria da Paz não acerta, indicando ali que a sua chama continuaria acesa e que ela não nascera para aquele destino. A sua chegada na Rodoviária de São Paulo rezando o salmo 23 foi uma cena forte e bem realizada, mostrando sua singularidade em meio à multidão que por ali chega todos os dias.
O capítulo de sexta-feira (24-05) foi icônico, enquanto Maria da Paz começava a dar seus passos que a tornará A dona do pedaço, ao lado de um núcleo cômico cativante, bem ao gosto dos clowns de Shakespeare, formado por atores de excelência (só não foi uma boa escolha Beth Farias como mãe de Nanini, a diferença de idade é inconcebível, literalmente, até brincaram com o seu biquini), sua avó cobrava a dívida familiar com mãos de ferro e força mítica. Matou seus inimigos e ateou fogo na casa rival, mais simbólico impossível, numa sequência de ação e emoção notáveis. Antes de morrer, a mãe coragem em sua carroça, arrancou o segredo que ali fora buscar, é preciso encontrar as crianças, a continuação do clã, juramento que moverá os Ramires. Destaque para o papel do padre, um veículo constante de apaziguamento.
Do outro lado do Brasil profundo, em São Paulo, outro país pulsa. Com suas personagens de um Brasil real, a professora aposentada com seus proventos minguados e coração gigante, o drama dos sem-teto amainados pela comicidade, o esnobismo da alta burguesia (Nathália Timberg divina), universo outro que atravessa o destino da protagonista, que como ela afirmou, se veste de esperança. Em suas costas, outro acordo será selado pelas mães sobreviventes, a morte dos amantes, para elas essa união é impossível, só gera tragédia. Como em O Seminarista de Bernardo Guimarães, a família sustentará essa falsa morte para enterrar o amor impossível, mas é claro que ele voltará com força...
Destaquemos ainda a beleza estética da trama com fotografia belíssima, cenas campais, sol que nos incandesce, interpretações viscerais, com menção honrosa para Luiz Carlos Vasconcelos, trilha musical bem brasileira e vivificante, abertura saborosa que deixa a gente com aquele gostinho de quero mais...Ao final, é isso que toda boa história nos provoca, o desejo de querer mais um pedaço...De bolo e de ficção...

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Órfãos da Terra: Entre o folhetim e a verossimilhança


A nova novela das 18:00h que estreou esta semana já roubou nosso coração desde o primeiro capítulo. Órfãos da Terra, da autoria de Thelma Guedes e Duca Rachid, tem como pano de fundo histórico, para uma grande história de amor proibido, o drama dos refugiados sírios. Parece que estes serão os dois eixos que nortearão a trama:  O amor e a guerra em suas variadas nuances, os dois maiores temas da literatura, senão, os únicos. Com esses ingredientes dificilmente a receita falhará. Poderia ser exibida ás 21:00h, tem força narrativa para o horário nobre.
O aspecto verossímil da trama nos pôs dentro da Guerra da Síria, ferida exposta e aberta do nosso tempo. A história macro da guerra cruza-se com a história micro da família de Laila (Julia Dalavia), a protagonista da trama, difícil dizer mocinha para uma moça tão valente. É como se em meio a milhares de vidas ali destruídas, as autoras pinçassem uma família para individualizar o drama coletivo daqueles que perdem tudo, até mesmo o chão debaixo dos pés. As imagens felizes de uma festa de aniversário foram substituídas, em segundos, por destruição e dor.
Em meio dessa terra arrasada, cenário inóspito de um campo de refugiados, brota (regado por água) o amor proibido de Jamil (Renato Góes) e Laila. Mas como nos bons folhetins, trata-se de um amor proibido. O Sheik Aziz (Herson Capri excelente no papel), vilão por excelência, já havia posto os olhos nela e, por meio de métodos escusos, ganha o direito de desposá-la. Ao fugir para não casar, a jovem atrai a ira do seu algoz. Não bastasse isso, ele é uma espécie de protetor de Jamil, que o tirou do orfanato quando criança e planeja que ele seja seu genro e sucessor. Jamil, portanto, sofrerá do dilema moral de trair aquele que o amparou, mesmo discordando de seu comportamento abjeto.
São claro os ecos de Tristão e Isolda sobre eles. Tristão recebe a tarefa de ir buscar a noiva de seu tio que o criara, o Rei Marcos, e, durante a missão, apaixona-se pela bela Isolda, até a viagem e o navio temos. Mas, como obra contemporânea costurada pelos fios da intertextualidade, torceremos que o final do casal seja outro que não o do drama medieval. Os espectadores torcem sempre por finais felizes.
Ao escolher o tema dos refugiados como fundo histórico, enredo completamente verossímil, as autoras também estão tratando dos imigrantes que  aqui vivem por diversas razões, na maioria por guerras também. Já sabemos que essa Babel paulista nos trará o lado cômico da trama com tantos “brimos” e ‘brimas” brigando e comendo quibe e tabule. Já nesse início, tivemos uma cena de briga entre um árabe (Flávio Migliaccio) e um judeu (Osmar Prado), ressignificando com humor conflitos milenares. Tal cena nos remeteu ao magistral filme Concorrência Desleal, de Ettore Scola. A colônia árabe de São Paulo receberá, em breve, a família de Laila, e o choque cultural certamente aparecerá. Do outro lado do mapa, casamentos arranjados, poligamia, dote... Por aqui, uma prima feminista que mostra os seios na Avenida Paulista, comerciantes tradicionais que têm que se adaptar aos novos tempos, em meio àquele clima de casa árabe com mesa farta, mães dramáticas e muito falatório.
Destaquemos ainda a beleza da novela construída por riqueza de detalhes e símbolos. A abertura é belíssima, um mosaico de vários povos que por aqui vivem e os personagens vão se juntar a eles como naquelas fotografias de família. A oposição entre a casa-palácio do Sheik e a pobreza dos refugiados, a aliança perdida no meio da explosão, a chave da casa que o árabe que vive há décadas no Brasil guarda no bolso esperando pela volta, os despojos no mar, fragmentos de vidas que se dissolvem abruptamente e os abraços frequentes da família para quem a Pátria passa ser apenas o desejo de permanecerem juntos, mostrando que o amor sobrevive em meio aos destroços e é o combustível para continuar buscando uma terra prometida...E a mola propulsora dos folhetins...
Começamos muito bem, e com desejo aceso de continuar assistindo nossas Sherazades, Thelma e Duca, que já nos encantaram outrora com seus cordéis encantados e joias raras, a cada capítulo mal respiramos esperando o próximo, assim como o sultão das Mil e uma noites, afinal o que gostamos mesmo é de ouvir boas histórias para continuarmos vivos e esperarmos o dia seguinte....