Para Lícia Soares de Souza
A
relação da telenovela com a literatura é simbiótica desde seu surgimento. A sua
origem remonta aos folhetins publicados nos rodapés dos jornais no século XIX.
As primeiras tramas exibidas foram adaptações dos clássicos brasileiros (Senhora, A moreninha, A Sucessora
dentre outros). Depois passamos para algumas livres inspirações, a exemplo de Fera Ferida, pautada na obra de Lima
Barreto, as muitas tramas ligadas aos romances de Jorge Amado (Tieta, Porto dos milagres) ou inspiradas no Romance de 30 (Renascer, Velho Chico).
Nos últimos anos, algumas obras têm adotado cada vez mais o processo de citação
direta ou indireta, trabalhando a intertextualidade (“todo texto é um mosaico
de citações” Kristeva, 1974) em todas as suas infinitas possibilidades.
Estratégia criativa elevada à máxima potência em Bom Sucesso, que se finda,
infelizmente como todo livro, essa semana, mas continuará ecoando em seus
leitores.
Os
autores, Paulo Halm e Rosane Svartman, e seus roteiristas igualmente talentosos
e certamente bons leitores, investiram com força nesse profícuo diálogo entre
os textos de todas as cores, gêneros, nacionalidades e épocas. A novela acolheu
inúmeros repertórios culturais, do rap a Cyrano
de Bergerac, de Vinicius de
Moraes a Fernando Pessoa, da Letra
Escarlate a Drummond, do Carnaval à Ópera, dando ênfase a algumas
obras-chaves que funcionavam como molas propulsoras da trama, Dom Quixote, Alice no país das maravilhas e Peter
Pan, espécies de alter egos dos protagonistas.
A
literatura costurou toda a trama, cujo um dos protagonistas, Alberto Prado
Monteiro, é um bibliófilo, vivido com toda a maestria por Antônio Fagundes,
dono de uma editora em crise financeira, retrato do nosso mercado editorial
invadido por celebridades e youtubers. A presença dos textos se corporifica na
trama e se enreda na vida das personagens, seja nos devaneios de Paloma a cada
nova leitura, seja na tropa de funcionários do Capitão (Captain, my captain) em
suas investigações e peripécias a la Sherlock Holmes ou no Satanás Burlesco que
se transformou o vilão Diogo.
Nesses
últimos capítulos, os diálogos se intensificaram e se tornaram ainda mais
sofisticados e belos. O incêndio na editora foi antecipado pela leitura
dramática de Farenheit 451 de Ray
Bradbury, obra distópica e utópica a um só tempo, que ganhou vida na voz de
Fagundes ao passo que as chamas consumiam os livros. Após o fogo, um momento de
rara sensibilidade foi encenado sobre as cinzas. Assim como no conto americano,
cada personagem escolheu uma obra (com ligação especial com cada papel
interpretado) para guardar na memória, espaço no qual estaria protegida para
sempre de qualquer tirania, fogo, guerra ou ditadores, e tal como fênix
ressurgiram dos escombros. Vale ressaltar nessa sequência, a morte de Gisele e
o réquiem cantado para ela por seu amigo William, a emblemática Geni, de Chico Buarque.
A
história construída sobre o lastro forte dos livros é também uma ode à vida com
suas grandezas e pequenezas, sobretudo, uma acurada reflexão sobre a morte e o
tempo através da doença terminal do Seu Alberto. Estamos aguardando o seu grand finale com ansiedade, pois já
podemos imaginar a beleza que virá em seu último ato, epílogo de todos nós. A
trama revigorou com beleza ímpar o horário das 19, não só pela presença da
literatura e do estímulo ao letramento literário dos telespectadores, mas pela
vida que pulsa no riso e choro humano, seja nas ruas de Bonsucesso, seja nos
corredores das mansões solitárias. Avante, Quixotes de todos os lugares! A
novela e a vida nos mostra que a literatura e a arte não cura nossas dores, mas
ajuda a suportá-las! Contar e ouvir boas histórias continuará fascinando os
homens de todos os tempos, era uma vez, e outra e outra...