Para Chico Lima e sua cintilação do olhar
Assisti
ontem nesse feriadão de Carnaval (esse é o meu bloco) ao novo filme de Del
Toro, A forma da água, com mais de uma dezena de indicações para o Oscar.
Curiosa a princípio pelo título enigmático, guiada pelo prazer que tive com O labirinto do Fauno, ansiosa para saber o motivo de tantas indicações e motivada
pelas recomendações especiais de 3 amigos cinéfilos (João Evangelista, Gleidson
Ramos e Juliana Salles), devo dizer que todos estavam certos, é mesmo um grande
filme, daqueles que causam o tal estranhamento sistematizado pelos formalistas
russos.
O
argumento principal da trama é insólito (aquilo que não soe acontecer), uma
faxineira muda apaixona-se por uma Criatura aquática estranha(meio anfíbio,
meio peixe, meio homem) capturada nas águas da América do Sul pelos americanos
em plena Guerra Fria, plano de fundo político do filme (em O labirinto o
cenário de fundo é a ditadura de Franco). Ela trabalha em uma espécie de laboratório
secreto bem aos moldes do clima de espionagem e sabotagem entre essas duas
potências bélicas nos anos 60. Sua rotina maçante e quase robótica é despertada
pela chegada da Criatura aquática.
Em
um dos diálogos ficamos sabendo que para os nativos da região, a criatura era
considerada um Deus, fato que se confirmará no final. Ancorado em excelente
fotografia, cenários, trilha sonora, figurinos e jogo de luz, o filme nos remete todo tempo à uma atmosfera onírica aos moldes
dos contos de fadas (há ecos de Amelie
Poulain). Vale ressaltar, que há muitos outros contos de fadas e lendas
construídos através de laços afetivos entre criaturas de mundos diferentes ou
espécies diferentes tais como A Pequena Sereia, A Bela e a Fera ou King Kong dentre vários exemplos, inclusive nas diversas mitologias.
O
caráter fabular da narrativa é confirmado no início e no final pela voz de um
narrador que nos introduz na trama, que mais tarde ficamos sabendo que se trata
de Giles, o melhor amigo de Elisa, é esse o nome da protagonista. É interessante notar que para todos os seus
superiores ela é a faxineira muda, mas seus dois amigos, Giles e Zelda
(brilhantes coadjuvantes, Octavia Spencer arrebata como sempre, ele o gay artista velho
e solitário, ela a faxineira negra e mal casada) seu nome é sempre pronunciado
com muita força, pois um dos motes principais do filme é a comunicação com o
outro, esse estranho.
Daí
chegamos na tal alteridade (alter= outro), creio que a pedra de toque do filme.
A Criatura, esse outro estranho, desperta sentimentos e interesses diversos a
todos ao seu redor. Os interesses políticos das duas nações, o interesse
científico do cientista russo, que tocado pelo seu lado de pesquisador acaba por
arrepender-se de sua sabotagem e se aliará aos “sem voz” do filme para realizar
a retirada da Criatura do laboratório e tentar salvar sua existência, o interesse amoroso de Elisa e generoso de
Giles que depois de mais uma decepção profissional e afetiva resolve ajudar no plano mirabolante
da fuga, também entra aí Zelda que por sua amizade por Elisa completa a tropa
da salvação. Todos esses motivados em dar um sentido às suas vidas vazias e a
seus papéis subalternos, posição social ratificada sempre pelo Chefe do lugar,
antagonista por excelência, tão prepotente que acha que Deus se parece com ele,
jamais com a Criatura ou com Zelda.
A
riqueza metafórica e alegórica do filme é composta de infinitas camadas que creio
não conseguir alcançar em sua profundidade, daí tantos parêntesis nesse texto.
Comecemos pela água, a grande imagem do filme, explícita no título. Se a água é
amorfa e toma a forma do seu recipiente, ela terá um sentido único para cada
um. E ela surge sob diversas formas, no ferver dos ovos, no banho, na chuva, no
rio, e é claro na sobrevivência da Criatura. Símbolo de vida e erotismo, essa
carga semântica literalmente extravasa e transborda na tela, como na gloriosa
cena do encontro erótico-amoroso no banheiro ente Elisa e Ele (agora não mais a
Criatura) que respinga por todo prédio, não gratuitamente construído sobre o
cinema Orpheum.
O
ovo, outra metáfora da vida, é alimento para Elisa e para Ele, que também lhe
nutre com música e carinho. Os dedos apodrecidos do Chefe exalam o mal cheiro
de sua essência (cena boa quando Giles amassa o seu Cadilac verde-azulado,
modelo de sua arrogância). Os cabelos renascidos e a cura dos ferimentos de
Guiles por Ele mostra o seu vigor voltando depois de tantas frustações e a sua TV
sempre passando romances e musicais alimentam os sonhos de Elisa, que em uma das cenas
protagoniza um filme, onde finalmente solta sua voz.
Semelhante
aos heróis míticos, a origem de Elisa é desconhecida, uma criança encontrada à
beira de um rio e criada em um orfanato. O Chefe sugere que a sua mudez seja
fruto de suas cicatrizes no pescoço, alguém pode ter cortado suas cordas
vocais, fato que fica em aberto no filme. Há uma cena em que esse déspota a
assedia e a humilha, pois na sua fala destaca a sua mudez e cicatrizes como uma
espécie de argumento que ninguém mais se interessaria por ela.
Como
uma história sempre puxa outras e outras, A forma da água me lembrou o olhar
dos cronistas viajantes sobre O Novo Mundo, esse novo inapreensível pelos moldes
de olhos velhos. Francisco Ferreira de Lima pesquisador do tema e hábil
navegador dessas águas no seu livro O
Brasil de Gabriel Soares de Sousa & outras viagens (2009, 7 Letras/UEFS),
versando sobre esse espanto sobre o novo que nos seduz e apavora, resume a
tríade que rege o espírito dessa literatura: “Susto, espanto e maravilha. Com
essas três palavras atingimos o ser profundo da literatura de viagem: Antes que
qualquer coisa possa ser dita ou escrita, o viajante experimenta desconcertante
sensação intima, uma espécie de cintilação
do real, como a bem denominou Francis Affergan(1987). Nenhum código,
qualquer que seja, será capaz de domá-la porque elas a todos eles resiste. É só
através dessa cintilação que a
alteridade pode ser vivida em sua inteireza”(p.106-107)
Se
na Literatura de Viagem o Outro eram os mistérios do Movo mundo, em A forma da água o Outro era a Criatura,
Ele, o sem nome, já em nossas relações O Outro também nos seduz e apavora e
nessas diferenças conhecemos mais sobre nós mesmos, nem que para isso tenhamos
que mergulhar nos mistérios das águas pronfundas....Como nos versos islâmicos citados no final do filme:
“Impossibilitado de perceber Sua forma, encontro você à minha volta. Sua presença me enche os olhos com Seu amor, acalma meu coração, porque Você está em todos os lugares.”