A
novela Segundo Sol vem trazendo discussões muito interessantes em suas tramas
secundárias. É comum nas novelas de João Emanuel Carneiro o rodízio das
histórias, lançando luz simultânea em variados núcleos, como naquelas mesas
giratórias nas quais variados pratos vão passando em nossa frente. As histórias
secundárias não são apenas satélites que giram ao redor do planeta, nesse caso
em torno de Beto Falcão e seus dilemas éticos e amorosos, elas ganham corpo
próprio e nos fazem até esquecer qual o eixo norteador da novela.
Personagens,
a princípio coadjuvantes, vão crescendo e ganhando fôlego ao longo da jornada e
despertando inquietações diversas. Sem desmerecer outras interpretações
femininas arrebatadoras e hilárias (Quem não ri com Dona Naná e seus dois
maridos ou de Gorete recebendo o espírito de Beto?), pois essa é uma narrativa com
muitas mulheres fortes vivendo suas dores e delícias. Agora, olhemos com mais
atenção para Zefa e Nice.
Zefa,
excelentemente interpretada pela atriz baiana Claudia Di Moura, em seu primeiro
papel na televisão, vem, literalmente, roubando a cena. Seu papel é tão
complexo que fica impossível rotulá-la. Ora ela é a mãe preta, a aia, a mucama
com toda carga de submissão e resquícios da senzala. Ora ela é a cumeeira da
casa grande, a única viga que mantém aquele palacete de pé sobre seus andaimes
carcomidos, a guardiã dos segredos escusos no fundo das gavetas, a voz
conciliadora ou tudo isso ao mesmo tempo. Repleta de fragilidade e força ela
nos desperta sentimentos diversos dentro daquele núcleo que representa a ruína
da família aristocrática. Seu sacrifício de escolhas duras entre os filhos e
sua maternidade dolorosa nos remonta à matriz bíblica.
Ela
é a famosa personagem esfíngica. Em nome do amor pelos filhos e pela impossibilidade
de sobrevivência num mundo extramuros que lhe é hostil, ela foi suportando e
vivendo com sua fé inabalável na família que caminha a passos largos para o precipício.
Suas angústias nos colocam diante de uma questão sociológica, qual o seu lugar?
Frase típica da submissão que ela sempre repete, “eu sei o meu lugar”, mas para
nossa sorte, Zefa, seu lugar cresce a cada capítulo e vem tomando nosso afeto.
Vamos
a Nice. Dona Nice, vivida pela talentosa atriz de teatro Kelzy Ecard, que assim
como Claudia Di Moura, estreia nas telenovelas com uma atuação de tirar o
fôlego. Nice, em princípio, pode ser vista como uma personagem-tipo, ela dá
vida a milhões de mulheres oprimidas pelos lares brasileiros. Dona de casa
caprichosa, mãe extremada, é completamente anulada em sua individualidade pelo
marido opressor, o grande Roberto Bonfim, que nos faz ter asco de Seu Agenor.
Aliás, permitam-me uma pausa, já que falei de asco. Agenor e o Delegado Viana,
ótimo ator baiano Carlos Betão (grande Sargento Getúlio nos palcos), estão tão
bons com seus “machos escrotos” que a gente tem vontade de surrá-los
pessoalmente, e é esse o papel do ator, viver tão bem sua personagem a esse ponto
de gerar repulsa ou empatia na plateia (
Aristóteles na veia), diante de um palco ou de qualquer tela.
Voltando
a Nice, uma dona de casa, do lar, que sofre suas dores calada e não tem voz
para enfrentar o marido, nem mesmo quando esse rejeita e expulsa suas filhas de
casa, mas como ela é muito mais que um tipo, sua virada começou. E sua força
vem daquilo que ela melhor sabe fazer, cozinhar. Sua cena dizendo sim a Cacau
(outra arretada) ou buscando desesperadamente sua imagem diante do espelho ou
ainda o primeiro enfrentamento com Agenor, questionando inclusive a sua falta
sexual, foram verdadeiros solos de ópera. Nice poderia ter saído das páginas de
Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles ou Adélia Prado, mas também ser nossas
vizinhas e amigas, é uma mulher de carne e osso, mesmo que escrita de tinta.
Continuemos
de olho nelas duas e em toda a trama, afinal todos têm direito a um Segundo Sol
ou terceiro, ou quarto e Sal na pele, na pele, na pele...