A
nova novela das 21:00h, Segundo Sol, de
João Emanuel Carneiro, começou antes de começar. A polêmica sobre a ausência de
atores negros numa trama que se passa num estado onde a maioria da população é
negra surgiu com força nos dias que antecederam sua estreia, assim que as
primeiras chamadas foram ao ar. Como professora de literatura e estudiosa das
relações entre Literatura e Telenovela, declinarei dessa discussão, pois
concordo em parte com a questão que certamente traria mais verossimilhança para
a trama, mas por outro lado, como defensora da arte como uma manifestação
humana que não tem como função exclusiva retratar somente o real, defendo a
novela como veículo de entretenimento e reflexão e sem esquecer que, sobretudo,
é um produto mercadológico, por sinal o mais rentável da Televisão. A Bahia é
só a moldura. Lanço, portanto, meu olhar para o terreno que costumo pisar, a
análise textual.
O
título da novela já sugere a ideia de recomeço, por isso a passagem de tempo de 18 anos para que nós telespectadores, conhecedores do embrião da trama mostrada
nos primeiros dias na novela, possamos compreender seus desdobramentos no tempo
atual. E esses são muitos e variados. O eixo central gira em torno de Beto
Falcão, cantor de Axé já em decadência que é convencido por sua entourage vigarista,
irmão/empresário/canalha e namorada/ambiciosa/mau-caráter que ele vale mais
morto que vivo, pois sua falsa morte faz com que volte a valer no
mercado artístico e publicitário, até romaria houve em sua porta mostrando a
hipocrisia dos fãs que já nem lembravam do cantor. Daí todos lucram com o falso
mito que se forma. São claros os ecos de Roque Santeiro,
obra-prima de Dias Gomes. Assim como Roque, Beto vira mito e passa a viver de
sua mitificação, como na fictícia Asa Branca que passa a ter no falso heroísmo
de Roque sua principal fonte de renda. Até uma sombra de Porcina temos, a
personagem de Débora Secco assume a postura de viúva oficial e vive para
alimentar seus direitos autorais e manter vivo o legado do marido.
Além
desse intertexto com o grande dramaturgo, autor de sucessos como Saramandaia e
Mandala, temos também o diálogo claro com Jorge Amado, como não poderia ser
diferente numa novela que tem como cenário Salvador. Inclusive houve uma cena
em que Miguel/Beto lê Tieta do Agreste (por sua
vez inspirada em A visita da velha Senhora, as
relações entre os textos são inesgotáveis), aquela que
volta para se vingar, assim como Luzia Batista (Cansada de Guerra, quanto
sofrimento em tão poucos dias). Os influxos amadianos são muitos, mas gostaria
de focar o olho na Casa Grande do núcleo rico da novela. Inclusive, a expressão
Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre ainda tem muito a dizer sobre nós) já foi
citada diretamente por Roberval, Fabrício Boliveira, que protagonizou uma cena
magistral ao descobrir sua paternidade.
Filho
do patrão com a empregada, aquela famosa “como se fosse da família”,
transbordou sua revolta justa com um brilhante texto e sua saída da Casa sob
uma chuva copiosa deu mais dramaticidade à cena (nos remete também
ao filme Que horas ela volta?). O discurso de Roberval nos levou a uma
passsagem de Jubiabá:
“A vida no Morro do Capa Negro era difícil. Viviam das
tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou do trabalho em casas ricas. As
crianças já sabiam seu destino; o trabalho no cais ou em fábricas enormes.
Enquanto isso, os meninos ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens
ricos. Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria outro
destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão. Tudo o que fez depois, veio
das histórias de valentia ouvidas à porta da casa da tia Luísa. E elas falavam
daqueles que se revoltaram contra o trabalho escravo, dedicado ao branco. Mas,
Balduíno era também moleque travesso, líder das coisas malfeitas no
morro. “
Roberval,
assim como Antonio Balduíno, deseja outra vida. Por agora, trilha caminhos
tortuosos, aguardemos o que virá, é uma personagem que promete. Até
então acho essa Casa o melhor núcleo da novela, com seus segredos, relações
familiares complexas e seu cruzamento com o eixo central através da adoção
problemática de Manuela, que acaba por reproduzir,com seu irmão Icaro, o mesmo
drama de Roberval e o seu patrãozinho Edgar.
Passados
os 18 anos, todos vivem sob esse segundo sol posto no passado que selou a
separação entre Luzia e seus três filhos por artimanhas das vilãs Carola e
Laureta, que volta agora para tentar reparar as injustiças sofridas e as pontas
da sua vida interrompida. Seus três filhos são todos rebeldes e sofrem dramas
diversos, drogas, rejeição, desajustes emocionais e farsas identitárias dentre
outros conflitos.
Ainda
destaquemos, nesse raiar do Segundo sol, a amoralidade de Laureta, uma Carminha
mais perversa porque não gosta de ninguém, só pensa em lucrar e para isso não
mede esforços, até leilão virtual de mulheres faz em sua mansão-club Sodoma e
Gomorra (já deu saudade de Dona Caetana e sua boate raiz), a bela
amizade entre o Gringo e Luzia, o sotaque bem acertado de alguns como Ícaro
(Chay Suede) e Ionan (Armando Babaioff,). Tudo leva a crer que investiram bastante na pesquisa
das expressões do nosso baianês, confesso que está massa ouvir tanto “mainha”,
“se saia”, “oxe oxe oxe” e “osadia”. E o colorido e a trilha sonora
da abertura também estão de lenhar, a mistura de Cassia Eller com Baiana System
ficou de torar.
JEC é conhecido como autor de tramas fortes, nos deu o maior
sucesso dos últimos anos com Avenida Brasil, além de bagunçar nossa cabeça com A Favorita. O
situo na linhagem de Gilberto Braga, com seus conflitos de forte carga dramática,
jogo social em torno do poder do dinheiro, relações familiares densas e seus
famosos ganchos que nos deixam ligados até o dia seguinte. Acho que O segundo
sol até começou meio morno, mas já começou a esquentar....Continuemos na cocó,
se ligue aí..
P.S. Eu sou baiana de Feira de Santana e creiam: Existem muitas Bahias...
P.S. Eu sou baiana de Feira de Santana e creiam: Existem muitas Bahias...