O
tema da vingança atravessa a história da Literatura. Na mitologia grega temos
como um dos grandes exemplos a personagem da tragédia de Euripedes, Medeia, que para vingar-se da traição
do marido, Jasão, mata os filhos que tivera com ele. Em Hamlet, o herói vacilante vê-se obrigado a vingar o assassinato do
seu pai que fora morto por seu tio para usurpar o trono, ainda casando-se com
sua mãe. Em O Conde de Monte Cristo,
o protagonista volta para cobrar vingança contra todos que o traíram. Esse
último serve de inspiração direta para O Outro Lado do Paraíso. As personagens
que encarnam esses planos de vingança geralmente são marcados pelo que os
gregos chamavam de Hybris, a desmesura ou desmedida, ou seja, para executarem
seu plano de vingança nada os detém, são capazes de tudo, até memso desafiarem
os deuses e os códigos morais e sociais.
Clara
se aproxima dessa característica, movida pela sede de vingança, ou justiça,
dependendo do ponto de vista, ela voltou disposta a reparar o mal que lhe fizeram,
para só depois cuidar de ser feliz. Começou seu plano vingando-se do médico que
lhe diagnosticou como louca, facilitando sua internação. Para esse ela trouxe à
tona sua orientação sexual escondida sob as sombras das cortinas sociais.
Refeitos do escândalo que revelou que o Tigrão era Tigrete, o drama tornou-se núcleo
cômico da novela. Agora era a vez do delegado, pois seu plano é urdido em
ordem crescente relacionado à proporção do mal que lhe causaram. O delegado
Vinicius (Flávio Tolezani) engavetou suas
várias queixas de agressão contra Gael, sonegando-lhe a justiça a que tinha direito
e também reforçou sua falsa insanidade. A vingança contra essa personagem teve
seu ponto alto no capítulo de ontem: A falha moral do delegado eclodiu, ele é
um pedófilo com requintes de psicopatia.
Para
chegar a Vinicius foi preciso enxergar com lentes microscópicas o drama de
Laura, vítima de abuso sexual infantil cometido pelo seu padrasto. A jovem e
talentosa atriz Bella
Piero, vem desenvolvendo muito bem sua personagem marcada pelas
cicatrizes no corpo e na alma (Sempre com roupas escuras que lhe cobriam todo
corpo, sempre cabisbaixa, olhar assustado, com dificuldade de comunicação, ela
encarnou bem o tom de seu papel). Não foi fácil chegar a ele, toda uma teia de indícios
foi construída até a cena catártica do julgamento de ontem. A polêmica sessão
de hipnose (deixo essa discussão de mérito profissional para quem entende, eu
fico com a ficção) realizada por Adriana fez emergir de sua memória os abusos
sexuais que sofreu.
Essa cena foi construída com
muita sutileza, repleta de alegorias e símbolos (confesso que fiquei com medo
de como seria mostrado). A casa de bonecas, num mundo em miniatura com cores
solares (ecos de Alice no país das maravilhas), foi invadida pelas botas
escuras e pesadas do criminoso com suas muitas mãos gigantes como uma criatura
monstruosa que toda criança associaria ao perigo. A cena ficou num limite
elegante entre o dito e o não-dito.
Voltemos ao capítulo de
ontem. O julgamento do delegado me parece que irá figurar entre as cenas
antológicas da telenovela brasileira. Todas as provas levantadas pareciam ser
em vão para punir o criminoso, destaque para a atuação do advogado de defesa,
com retórica irretocável conseguia desfazer e refutar todas as acusações. Até
que surge a testemunha-chave, como nos grandes filmes de tribunal nos quais
tudo acontece nos 45 minutos do segundo tempo quando o jogo parece perdido, a
diarista que trabalhou na casa de Laura na época em que sofreu as sucessivas
violações de sua infância.
Tiana, Ilva Niño (nossa eterna Mina, que acaba de se
recuperar de um câncer, borrando as fronteiras entre realidade e ficção mais
uma vez), numa entrada triunfal, revela todos os segredos que
assistiu silenciosamente naquela casa com tanquinho de tartarugas. Num monólogo
comovente pede perdão a Laura, que lhe perdoa em um balbucio eloquente. Diante
do depoimento cabal, só coube ao delegado confessar tudo e revelar seus crimes
hediondos, num discurso cínico típico dos psicopatas (humilhou a esposa-mãe ao
extremo, outra grande atuação, sua face foi se transmutando ao longo do júri
entre a segurança dúbia e o desespero comovente ao cair em si) e ainda
apontando seu fel para o juiz e Sofia como as próximas vítimas do plano de
Clara.
Daí em diante acho que foi o clímax de ontem,
a reação da plateia, mostrada em cada face, em cada olhar, em cada gesto, tudo
isso em silêncio, semelhante aos coros do teatro grego, eles iam com seus
gritos silenciosos mostrando a indignação diante daquela máscara que caia e
revelava a verdadeira face de um monstro. Quem assistiu ao julgamento, boa
parte das personagens da novela, representou metonimicamente um júri popular
que não perdoa o abusador infantil, era a personificação da opinião pública.
A chegada de Vinicius à
cadeia, sua descida aos infernos, foi também significativa. Ao se despir de
suas roupas lentamente para vestir o uniforme de presidiário, a câmera deu um
close em suas botas, símbolo de seu poder sobre as vítimas e foi logo avisado
pelo diretor do presídio o que costuma acontecer com criminosos como ele na
cadeia, de acordo com o código dos presidiários, certamente um spoiler do que
ocorrerá.
Ao final do capítulo
novamente surgiu a campanha contra o abuso infantil, dando álibis de
verossimilhança para a trama, bem ao modelo Glória Perez, pioneira nessa estratégia
de mershanndising
social, trazendo campanhas reais para o centro da narrativa. É a ficção trabalhando
a serviço da sociedade, esclarecendo, discutindo e informando sobre um tema tão
complexo e necessário. Creio que cenas como as de ontem fazem muitas pessoas
abrirem os olhos para essa questão grotesca e reafirmam os dados estatísticos
que sempre apontam que a maioria dos abusos sexuais são cometidos por alguém muito
próximo e de “confiança”, gente acima de qualquer suspeita.
Voltemos à Clara e sua Hybris, agora faltam 2,
o Juiz e sua grande algoz, Sofia, mas há indícios de que há um outro vilão se anunciando,
Renato (e em paralelo Gael vai se redimindo) e ela terá que reelaborar seus
planos. O mal da vingança é que ela te cega, assim como a cobiça pelas
esmeraldas também, e talvez o preço a pagar por ela, seja uma Vitória de Pirro,
na qual os ganhos da guerra não valem tantas perdas no caminho. Mas no caso de
Vinicius a justiça se cumpriu para nossa felicidade e emoção profunda durante o
capítulo de ontem....Continuemos na plateia desse espetáculo...Fechem as
cortinas para o monstro....Esse já foi expulso do Paraíso...