O
outro lado do paraíso entrou no ar com a difícil missão de
substituir o sucesso de A força do querer, tarefa sempre árdua em qualquer
setor, substituir algo ou alguém que alçou altos níveis de aprovação. Chegou de
mansinho sem muita novidade, com uma primeira fase meio morna para quem estava
com a adrenalina alta ministrada pelas doses diárias de Glória Perez. A
primeira fase funcionou como uma etapa bem didática com a função de preparar o
terreno para a sua segunda fase que agora caminha muito bem. A princípio
entramos em contato com os perfis psicológicos de cada personagem e com as
motivações de vingança/justiça que animam a segunda fase, pois toda a trama é
baseada na lei do retorno, haja vista sua música de abertura que não deixa dúvidas
( “Tudo que você faz, um dia volta pra você”).
Na fase de transição entre a
primeira e a segunda fase, uma década, destaquemos os anos de formação de Clara
ao lado de Beatriz (como a de Dante, a conduziu das trevas para a luz através
do conhecimento). Assim como Clara, ela também foi vítima de uma cilada
familiar motivada pela cupidez que culminou num destino comum para ambas: o
sanatório. Não foi difícil reconhecer logo nos primeiros acordes da convivência
das duas a relação intertextual com O
conde de Monte Cristo, clássico incontornável da literatura ocidental de
Alexandre Dumas, relação muito bem tecida já que também seu mote central é um
plano de vingança/justiça. Beatriz preparou Clara emocionalmente e culturalmente para poder trilhar seu
retorno e conduzir seu plano de reaver o
que lhe foi usurpado, além de fazê-la herdeira de uma fortuna que facilitará a
execução de seus objetivos.
Walcyr Carrasco, profundo
leitor dos clássicos da literatura ocidental, adaptou vários deles para o
público juvenil, e costuma trazer esse salutar diálogo para suas tramas na
televisão. Em O cravo e a rosa
relemos A megera domada de Shakespeare,
em Chocolate com pimenta entramos em
contato com A viúva alegre filme de 1934, em Sete Pecados com A divina Comédia, em Êta mundo bom revimos um misto de Cândido de Voltaire e Mazzaropi, para
ficarmos aqui com as citações mais diretas, pois ele também faz menções mais
sutis como na última cena de Amor à vida
inspirada em Morte em Veneza.
Para Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, um clássico é
aquela obra que nunca termina de
dizer o que há para dizer, dessa forma considero extremamente bem-vindo esse
trabalho de visitação ao nosso acervo cultural nas telenovelas, além de enriquecer
o texto, nos põe em contato com os grandes dramas humanos que são em última
instância a matéria primordial das obras
clássicas. Também lembrando Kristeva “todo texto é um mosaico de citações”,
vamos nos alimentando do que lemos, do que vimos, do que ouvimos e assim
costurando nossos fios através dessa rede interminável de diálogos.
Dito isto, passemos para
alguns detalhes da trama. Um ponto me chama
atenção na novela, a complexa relação da maternidade. Há muitos tipos de
mães na narrativa. A megera-mor Sophia, brilhante Marieta Severo (quem diria
que Dona Nenê seria capaz?), manipula e maltrata seus 3 filhos ao sabor dos
seus planos, com ênfase para sua não aceitação da filha anã, para ela uma
aberração que não merecia e tenta esconder a todo custo. A personagem Stela
está interessantíssima, Walcyr inova ao trazer o tema do nanismo para a
discussão, além de termos com ela outra relação maternal não consanguínea, sua
babá é sua mãe de fato e luta por sua felicidade.
Nadia, outra manipuladora,
também conduz com mão de ferro o destino dos filhos. Esposa de um juiz corrupto,
se refestela com seus “jeitinhos” e lucros auferidos, tida como grande dama da
sociedade é a encarnação do preconceito e egoísmo, seu peso é aliviado na trama
pela comédia que é sua alcova com suas peripécias sexuais. A mãe do médico gay,
que não tem coragem de sair do armário para não decepcionar mamãe, é outra
relação materna interessante, uma manipuladora também, ganha nossa simpatia
pelos disparates que fala. Lívia, obsessiva pela maternidade, compactuou com o plano
diabólico da mãe, para ficar com o filho de Clara. A personagem de Glória
Pires, em nome de salvar o futuro de sua filha, aceita morrer em vida e mata
Elizabeth para dar vida à Duda. E parece que mais mistérios envolvem sua
relação com a maternidade. Tudo indica que a maternidade na trama é que é o
padecer no outro lado do paraíso, e até então se insinua que o amor materno
pleno só se realizará com Clara que moverá o mundo para reaver o filho roubado,
sua verdadeira mina.
Outro ponto especial na
trama é a atuação dos nossos atores octogenários. Um time estrelado: Lima
Duarte, Fernanda Monte Negro, Nathalia Timberg, Laura Cardoso e Ana Lúcia Torre
( essa septuagenária). Todas as vezes que eles aparecem em cena temos momentos
de fulgor na tela. Fernanda com sua personagem mística está mesmo alguns centímetros
acima do chão, ganhou uma aura de santidade. Sua cena em que enfrentou a morte
para salvar seu amigo/amor foi emocionante. Lima com seu homem cheio de brio e
dignidade que não se rende às tiranias dos poderosos também o faz com maestria.
Timberg roubou a cena e continua roubando com sua presença fantasmagórica, uma espécie
de mentora de Clara, mesmo depois de morta. Ana Lúcia está cômica com seus
gracejos sobre a macheza do filho e sua birra com a nora. Agora, Dona Laura
Cardoso como a cafetina Caetana é um presente para nós, seu retorno ontem foi
hilário, “quem nasceu para quenga, morre quenga”, completa o quinteto de ouro.
Excelente escolha de elenco, reunir os cinco numa mesma trama.
Sobre os retornos da segunda
fase, já temos na arena a volta triunfal de Raquel como juíza, nada mais
simbólico para o projeto da novela. Ela que foi humilhada por sua cor e
condição social, retorna como uma espécie de esperança para que a justiça
social (e individual) seja mesmo feita sem as interferências do poder econômico.
Agora aguardemos a chegada de Clara em Palmas, certamente não será de balão
como Edmond Dantes, mas
causará muitas surpresas agradáveis para uns e demolidoras para outros...