O remake
da novela Renascer, no ar há quase dois meses, tem sido um chocolate de safra
premiada para os amantes da teledramaturgia que andavam sofrendo com o horário das
21h, o chamado nobre e de maior prestígio entre os telespectadores. No Brasil, quando
alguém pergunta “Você viu a novela ontem”? É dessa faixa que estamos falando e
é da Globo também, portanto, quando dizemos “A novela”, esse artigo indica o seu
sucesso entre o público.
A
trama de Benedito Ruy Barbosa de 1993, agora repaginada por seu neto, Bruno
Luperi, tem alcançado a alma desse país de noveleiros. Construída sobre o mesmo arcabouço, eixos principais e duas fases sedimentadas em constante conexão, já sai na frente ao ter como interesse quem assistiu
há 31 anos, mas vem sendo adaptada sob medida para continuar comunicando
a
um novo público questões da sociedade de hoje. Novas águas correndo sobre o rio de três décadas.
Em lugar de uma Buba Hermafrodita (intersexual
hoje), temos uma Buba mulher trans. No quesito submissão feminina, temos várias
cenas sobre os anseios e direitos das mulheres. Uma professora Lu, dantes normalista
casadoira, que defende e explica a Educação do Campo e suas peculiaridades, mas
talvez dentro do rol das mudanças uma das principais e mais tocantes venha da
religiosidade.
A
presença de três sacerdotes diferentes vivendo em harmonia e dispostos a
aprender com a religião do outro tem rendido cenas belíssimas. Muito mais que tolerância
religiosa temos coexistência equânime e respeitosa entre Inácia, Padre Santo e
Pastor Lívio ( santa e profana trindade). Luperi inaugura na sua ficção uma Teologia
de Comunhão, com momentos que beiram a epifania, como aquela em que Inácia (Ave,
Edvana) explicou ao Pastor (em crise com seu papel) detalhes do seu credo, ou
na qual o Padre toma o banho de folhas sob a fala surpresa de Inocêncio: Só se
vê na Bahia!
Por
falar em comunhão e respeito, outro ponto alto da trama é o brinde à fonte
caudalosa da obra de Jorge Amado que aduba o chão dessa plantação desde o avô. Terras
do sem fim e São Jorge dos Ilhéus estão agora nas mãos de
João Pedro e às vistas dos que daqui assistem, assim como Capitães da Areia
costurando a chegada de Teca e sua turma para somar-se à saga dos Inocêncio. Além
disso, de onde vem uma prostituta tão rica em personalidade e camadas senão da mesma
arca amadiana? Vale lembrar que a Jacinta Coroca de Tocaia Grande (um
dos meus preferidos) também vira parteira assim como dona Jacutinga. E a Descoberta da América pelos turcos? Turcos não, libaneses! E de
fontes mais remotas temos o facão Excalibur do Rei Artur/Inocêncio, um herói moderno
por excelência a se debater em suas angústias. Sem contar nas dezenas de outras
citações diretas e indiretas que saltam da tela.
Outro elemento
forte no remake são as discussões socias que permeiam os diálogos vigorosos.
Tião (para mim uma das grandes personagens da nossa história televisiva) com
ares de Jeca Tatu/ Fabiano/Severino/, com o acréscimo da eloquência mesmo que titubeante,
encurvado na sala diante do Coronel, aponta a impossibilidade de enriquecer só
com o seu trabalho e busca no pacto com o “Diabinho da garrafa” a vida que
sonha para sua Joaninha e seus remelentinhos, mesmo que tenha que sacrificar um
deles, desde que não tenha que escolher. Não podemos esquecer que os elementos místicos
e míticos também se corporificam fortemente aqui, estamos diante de um altar dividido
entre Nossa Senhora e o capirotinho. A cômica descrição da receita para o pacto
e a crença ingênua do agora Tião Galinha (Ave, Irandhir) rende um tipo de riso
incômodo que expõe a chaga da ignorância.
Ainda
sobre o social abordado, a presença espectral que alude ao Comunismo, Reforma agrária,
Direitos trabalhistas e tantas outras assimetrias volta e meia se revela entre
as barcaças de cacau, seja no novo sistema de João Pedro ou nos questionamentos
de Lívio ou de Sandra.
Não
podemos terminar essa prosa sem falar da grandeza das tramas paralelas que ganham
vida, vez, voz e tempo, a exemplo de Norberto (Ave, Matheus) e seu drama amoroso,
é como sua mininovela dentro da novela com quebra da quarta parede e trilha
sonora e tudo. Ou do retrato simbólico do Patriarca, pai de 3 Josés
fragilizados e de 1 João injeithadinho e desprezado (# bonénovoparaele), diante do qual nenhum consegue se afastar
ou fazer o Parricídio para usar um termo freudiano, afinal todos querem mesmo é
o seu colo e reconhecimento. E toda riqueza de acolhimentos da casa de
Diocleciano e Morena onde o amor e o cuidado transbordam com os seus filhos do
coração, aliás Zinha é uma sacada genial
do criador. E o que foi aquele ritual de luto, a chorona aqui que conhece
aquela dor, desaguou...
O que
eu posso dizer mais? A trilha sonora, vixe. A molduras das janelas e portas recortando as cenas, êta. A iluminação porreta. O baianês deu uma melhorada
considerável com uso de dezenas de expressões tão nossas, feche sua cara se não
botou reparo! E sigamos pisando cacau porque isso está uma belezura, né não,
oxe! Se o que nos consome fosse apenas fome....Lará lariará ileilêilá...Acho
que podemos dizer sem medo: - Viu A novela ontem? deixe de chibiotagem e vá lá...
Vibro com os capítulos e depois com suas publicações ❤️❤️
ResponderExcluirMuito obrigada! continuemos de olho!
ExcluirFlor Carneiro Morais
ResponderExcluirExcelente, estou cada dia mais apaixonada pelas cenas. Fiquei irradiada com o diálogo entre Inácio e o Padre sobre a representatividade dos orixas na terra. Fantástico.
ResponderExcluirFoi uma cena magna!
ExcluirVoltei a fazer o que já tinha deixado há anos, assistir novela. Essa vale a pena.
ResponderExcluirVale mesmo!
ExcluirQuerida Alana,
ResponderExcluiros olhares sobre outrem são sempre escolhas que fazemos com pitadas de sal ou colheradas de açucar, ou ainda com a mistura dos dois, criando um olhar agridoce. Talvez esse último seja o da medida acertada de um olhar... um olhar generoso como o teu, eu diria, para a escrita do neto de Benedito Ruy Barbosa.
Você, costureira de mãos cheias de retalhos, linhas, botões, ilhoses, viés e muitas entretelas, domina esse coser como ninguém, pois sendo costureira de peças únicas, nos traz esta costura delicada, de referências que são como especiarias de 500 anos atrás, vindas de longe, para explicar as entrelinhas do folhetim que, após 30 anos, não é mais um vestido, branco do tempo, guardado em um baú talhado em pedaço de jatobá. Não. O que você nos traz é roupa nova, colorida, porém feita de um tecido envelhecido, como vinho, nas folhas das histórias amadianas.. um linho caro, uma seda pura...
E nos alinhavos dessa "nova" roupa, o tempo parece reger o estilete esferográfico de Luperi, já que as águas de março chegaram nos últimos capítulos de uma Renascer cheia de "começares de novo". Novos núcleos, novas personagens: poder, comunismo, sedução, ignorância e comunhão juntam-se num agridoce caldaloso que todos querem provar. Sim, o prato está servido. E isso "Só se vê na Bahia" - que fique bem claro como o sol de Ilhéus sobre os jatobás que sombreiam os pés de cacau - ou em uma novela da Globo. Ponto.
Sigamos tecendo nossas tramas do lado de cá da tela!
ExcluirExcelente!
ResponderExcluirSensacional a sua narrativa. Melhor que a novela. Encantada!!
ResponderExcluirGosto da sua brilhante veia literária.
Sou sua fã.
Mary Barbosa
Muito obrigada, conterrânea!
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