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segunda-feira, 25 de março de 2024

Viu a novela ontem?: Renascer e suas novas águas

 

O remake da novela Renascer, no ar há quase dois meses, tem sido um chocolate de safra premiada para os amantes da teledramaturgia que andavam sofrendo com o horário das 21h, o chamado nobre e de maior prestígio entre os telespectadores. No Brasil, quando alguém pergunta “Você viu a novela ontem”? É dessa faixa que estamos falando e é da Globo também, portanto, quando dizemos “A novela”, esse artigo indica o seu sucesso entre o público.

A trama de Benedito Ruy Barbosa de 1993, agora repaginada por seu neto, Bruno Luperi, tem alcançado a alma desse país de noveleiros. Construída sobre o mesmo arcabouço, eixos principais e duas fases sedimentadas em constante conexão, já sai na frente ao ter como interesse quem assistiu há 31 anos, mas vem sendo adaptada sob medida para continuar comunicando a um novo público questões da sociedade de hoje. Novas águas  correndo sobre o rio de três décadas.

 Em lugar de uma Buba Hermafrodita (intersexual hoje), temos uma Buba mulher trans. No quesito submissão feminina, temos várias cenas sobre os anseios e direitos das mulheres. Uma professora Lu, dantes normalista casadoira, que defende e explica a Educação do Campo e suas peculiaridades, mas talvez dentro do rol das mudanças uma das principais e mais tocantes venha da religiosidade.

A presença de três sacerdotes diferentes vivendo em harmonia e dispostos a aprender com a religião do outro tem rendido cenas belíssimas. Muito mais que tolerância religiosa temos coexistência equânime e respeitosa entre Inácia, Padre Santo e Pastor Lívio ( santa e profana trindade). Luperi inaugura na sua ficção uma Teologia de Comunhão, com momentos que beiram a epifania, como aquela em que Inácia (Ave, Edvana) explicou ao Pastor (em crise com seu papel) detalhes do seu credo, ou na qual o Padre toma o banho de folhas sob a fala surpresa de Inocêncio: Só se vê na Bahia!

Por falar em comunhão e respeito, outro ponto alto da trama é o brinde à fonte caudalosa da obra de Jorge Amado que aduba o chão dessa plantação desde o avô. Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus estão agora nas mãos de João Pedro e às vistas dos que daqui assistem, assim como Capitães da Areia costurando a chegada de Teca e sua turma para somar-se à saga dos Inocêncio. Além disso, de onde vem uma prostituta tão rica em personalidade e camadas senão da mesma arca amadiana? Vale lembrar que a Jacinta Coroca de Tocaia Grande (um dos meus preferidos) também vira parteira assim como dona Jacutinga. E a Descoberta da América pelos turcos? Turcos não,  libaneses! E de fontes mais remotas temos o facão Excalibur do Rei Artur/Inocêncio, um herói moderno por excelência a se debater em suas angústias. Sem contar nas dezenas de outras citações diretas e indiretas que saltam da tela.

Outro elemento forte no remake são as discussões socias que permeiam os diálogos vigorosos. Tião (para mim uma das grandes personagens da nossa história televisiva) com ares de Jeca Tatu/ Fabiano/Severino/, com o acréscimo da eloquência mesmo que titubeante, encurvado na sala diante do Coronel, aponta a impossibilidade de enriquecer só com o seu trabalho e busca no pacto com o “Diabinho da garrafa” a vida que sonha para sua Joaninha e seus remelentinhos, mesmo que tenha que sacrificar um deles, desde que não tenha que escolher. Não podemos esquecer que os elementos místicos e míticos também se corporificam fortemente aqui, estamos diante de um altar dividido entre Nossa Senhora e o capirotinho. A cômica descrição da receita para o pacto e a crença ingênua do agora Tião Galinha (Ave, Irandhir) rende um tipo de riso incômodo que expõe a chaga da ignorância.

Ainda sobre o social abordado, a presença espectral que alude ao Comunismo, Reforma agrária, Direitos trabalhistas e tantas outras assimetrias volta e meia se revela entre as barcaças de cacau, seja no novo sistema de João Pedro ou nos questionamentos de Lívio ou de Sandra.

Não podemos terminar essa prosa sem falar da grandeza das tramas paralelas que ganham vida, vez, voz e tempo, a exemplo de Norberto (Ave, Matheus) e seu drama amoroso, é como sua mininovela dentro da novela com quebra da quarta parede e trilha sonora e tudo. Ou do retrato simbólico do Patriarca, pai de 3 Josés fragilizados e de 1 João injeithadinho e desprezado (# bonénovoparaele), diante do qual nenhum consegue se afastar ou fazer o Parricídio para usar um termo freudiano, afinal todos querem mesmo é o seu colo e reconhecimento. E toda riqueza de acolhimentos da casa de Diocleciano e Morena onde o amor e o cuidado transbordam com os seus filhos do coração, aliás  Zinha é uma sacada genial do criador. E o que foi aquele ritual de luto, a chorona aqui que conhece aquela dor, desaguou...

O que eu posso dizer mais? A trilha sonora, vixe. A molduras das janelas e portas recortando as cenas, êta. A iluminação porreta. O baianês deu uma melhorada considerável com uso de dezenas de expressões tão nossas, feche sua cara se não botou reparo! E sigamos pisando cacau porque isso está uma belezura, né não, oxe! Se o que nos consome fosse apenas fome....Lará lariará ileilêilá...Acho que podemos dizer sem medo: - Viu A novela ontem? deixe de chibiotagem e vá lá...