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terça-feira, 24 de maio de 2022

Pantanal: A força da ficção no coração do Brasil

 


                                                                                              Para Michel, meu amor[i]

 

Devo começar dizendo que vi a primeira versão de Pantanal em 1990 e que me lembro de muitas coisas daquela época longínqua, mas devo dizer mais, estou vendo verdadeiramente agora a força dessa história e o caudaloso rio e todos os afluentes que a compõem e devo dizer mais ainda: Ela está conquistando novamente um público cativo e sedento por boas novelas e novos telespectadores que já tinham abandonado a telinha e outros tantos jovens que estão saboreando esse biscoito fino pela primeira vez.

A força da trama reside, sobretudo, no choque de dois mundos. Um marcado pela natureza, o outro pela cultura. Um marcado pelo Pantanal, ambientes abertos e sua exuberância. O outro pelo Rio de Janeiro, seus espaços fechados e sua endogenia. Num vigora um certo código de ética. Noutro, as relações são vazias. E esses dois mundos se encontram e se chocam através do malfadado casamento de Zé Leôncio e Madeleine e no fruto cruzado dessa relação difícil: José Joventino, Jove, símbolo da intersecção desses dois mundos. Filho sempre deslocado onde quer que esteja, aqui ou lá, lá ou aqui. No Rio ele não é o mauricinho esperado, no Pantanal ele não é o peão desejado. Observem o guarda-roupa dele com suas camisetas panfletárias (Maio de 68, universo Rock and Roll e outras mensagens) e gastas, sua voz vacilante e seu olhar perdido magistralmente vivido pelo Jesuíta Barbosa.

Vale lembrar que Jove, apelido herdado como diminutivo do nome do avô, é um dos nomes de Júpiter, o correspondente romano de Zeus, Deus pai para os gregos, e que a trama também circula em torno da figura paterna, sempre problemática e em busca de um ideal. Tadeu, o bastardo, sofre com sua condição de filho reserva, José Lucas de Nada e sua procura, Guta que repele a figura do pai ruim, Muda que quer vingar a morte do dela, e no centro de tudo José Joventino, José Leôncio e Jove, o trio que costura a narrativa.

 E o universo mítico não para por aí, vejamos o reflexo de Caronte em Eugênio, Almir Sater virtuoso,  que protagonizou uma bela cena de viola também de pai para filho, um rito de passagem mágico ou tantas lendas ribeirinhas dos encantados que tanto nos encanta. Observe que é uma novela lenta com cenas longas e muitas paisagens, narrada em um tempo mais contemplativo que da ação propriamente. E vamos seguindo seu fluxo. Os espaços são relevantes na condução da história. As cenas da família do Rio, sempre são antecedidas pela imagem da casa que se apresenta em franca decadência assim como aquele clã que só se relaciona entre si e lutam para manter o nome que já nada diz, tudo muito outonal. No Pantanal, as frentes da casa sempre aparecem também, mas de forma solar, com promessas de primavera.

O Pai Maior, assim chamemos José Joventino, abandona a cultura e se integra na natureza, dando vida à fantástica personagem do Velho do Rio, uma figura incontornável, enigmática, que encarna o arquétipo do Mentor, não há adjetivos para Irandhir e  Osmar Prado em suas atuações. Quando o Véi entra em cena, nós aqui do outro lado da tela, também o reverenciamos e recebemos seus conselhos. Os ecos do conto A terceira margem do rio de Guimarães Rosa são evidentes, aliás, quem foi mais gênio que ele em pintar o metafísico no coração do Brasil. Seu herdeiro José Leôncio, Marcos Palmeira nosso matuto dos bons, se embrutece, mas não muito, a fim de fazer fortuna e deixar para seu sucessor aquele império de terras e gado, mas Jove não quer nada disso, e nem sabe o que quer de verdade e por isso  é questionado, reeducado e meditativo todo o tempo. Três homens do mesmo sangue muito próximos e muito distantes.

E nesse conflito nasce o amor pujante de Jove e Juma Marruá (linda e talentosa Alanis), a “menina só natureza” que desconhece os meandros da cultura e age por instinto (na infância ela e a mãe se cheiravam como os bichos fazem), e os dois vão dando aula um para o outro sobre o seu mundo e construindo um casal improvável na cultura e possível na natureza. Mais uma vez o amor se dá entre natureza e cultura, é sina do pai e do filho amar mulheres de mundos diferentes. As cenas da alfabetização de Juma por Jove são de rara beleza e pureza, assim como ela o ensinando a caçar, além das lições de aprendizagem amorosa que são tanto sensuais quanto ingênuas. Um amor e uma cabana é possível? Veremos sem pressa...

Outro aspecto de destaque nesse remake de Pantanal reescrito por Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa (Pai Maior) é a atualização de alguns discursos como as questões relacionadas à ecologia, ao agronegócio, ao feminismo e afins, mas sem pesar a mão porque se for didático demais cai na panfletagem e acho que o Brasil está gostando e precisando muito é de ver mulher virar onça, velho virar sucuri, casal se amando no rio e moda de viola ao luar. Vale lembrar que a novela presta homenagem ao seu criador em alguns momentos, as camisas de Tadeu trazem o nome Mezenga (Rei do gado) e a avó de José Lucas, é a cafetina Jacuntiga ( Renascer), além do elenco de atores que sempre trabalha em suas tramas que têm por mote o universo rural, o chamado Brasil Profundo.

Antes de acabar essa prosa, devo dizer que as tramas secundárias também nos enredam, quem não está torcendo pela virada de Maria Bruaca, ou para saber do desenredo de Muda, ou apaixonado pela bondade e sabedoria de Filó, sempre a sovar a massa da vida (Dira Diva) e tantos outros pormenores que tornam a obra grande como os rebanhos de Zé Leôncio...Ara...Já ia me esquecendo de um pormenor dos melhores, Renato Teixeira, dando vida ao personagem vivido por seu filho na primeira fase, cantando a amizade no momento de sua morte, bonito demais e a gente não se cansa de ouvir de novo e de novo, eu tenho um cavalo preto....E como a novela é linda, louvemos a amizade, esse sentimento mais lindo do  mundo...A ficção e os amigos têm me ajudado a sobreviver:

Amizade Sincera - Renato Teixeira

 

A amizade sincera

É um santo remédio, é um abrigo seguro

É natural da amizade

O abraço, o aperto de mão, o sorriso

Por isso, se for preciso

Conte comigo, amigo, disponha

Lembre-se sempre que, mesmo modesta

Minha casa será sempre sua

Amigo

Os verdadeiros amigos

Do peito, de fé, os melhores amigos

Não trazem dentro da boca

Palavras fingidas ou falsas histórias

Sabem entender o silêncio

E manter a presença mesmo quando ausentes

Por isso mesmo, apesar de tão raros

Não há nada melhor do que um grande

Amigo, amigo, amigo...

 

 



[i] Meu grande amado que se encantou há dois meses e, dentre tantos momentos especiais que dividimos, assitir ás novelas das 9 juntos era sagrado, em 1990 começamos a namorar e como Juma e Jove nos ensinamos muito mutuamente...