Na última quinta-feira, 21 de
abril, dia simbólico na História do Brasil, após mais de dois anos sem ir ao
cinema, me permiti o presente vivificante de assistir ao brilhante Medida
Provisória. Cinema lotado aqui na minha Feira de Santana, repleta de jovens de
todas as idades, inclusive meu filho, sobrinhas e muitos rostos conhecidos e
comungantes daquele banquete. Por quase duas horas experimentamos a gloriosa
“Suspensão temporária da descrença” cunhada por Coleridge sobre a magia da
literatura.
A plateia estava atenta e
sedenta por uma boa história e a encontrou. O que começa como uma aparente
comédia de costumes evolui para um eletrizante thriller com notas de trama
policial e de aventura, mas preservando aquele humor irônico que apreciamos e
que desafia nossa reflexão para o ontem e o hoje e nos faz engasgar com a
pipoca ou com o papel da Fruitella (feita para fruir a tela) no meu caso
O filme é uma adaptação do
livro e peça de teatro do ator e dramaturgo baiano Aldri Anunciação, Namibia, Não (2012), rosto familiar
para nós que prestigiamos a Rede Bahia e que agora será visto por milhares, merecendo todos os prêmios. Com direção de Lázaro Ramos (também dirigiu a peça acerca de dez anos) e presença de grande elenco (e elenco grande, inclusive do próprio
Aldri, como Ivan, personagem chave na trama) e equipe de mais de 800 pessoas com
trabalho direto e indireto. A narrativa retrata uma distopia na qual, em pleno
2021 ou 2022, o governo brasileiro aprova uma medida provisória que decreta que todos os
“melaninados” retornem para a África como uma espécie de política de reparação
pelos 400 anos de escravidão.
A trama tem por protagonistas um trio, dois primos e a esposa de um deles, o jornalista André, o advogado Antônio e a médica Carolina/Capitu, vividos respectivamente por Seu Jorge, Alfred Enoch e Taís Araújo que emprestam seu corpos e almas aos papeis. Uma família negra que vive em um prédio de brancos, onde o único outro negro é o porteiro. Aqui, vale destacar que o termo protagonista é mesmo explorado com a força de sua etimologia, esses três serão aqueles que primeiro lutam e resistem, os dois desde o princípio e ela, na medida em que toma consciência de seu papel social sufocado sob o jaleco.
Destacamos que os nomes dos três aludem ao século XIX, os abolicionistas negros, o engenheiro André Rebouças, o advogado e poeta Luiz da Gama, ambos jornalistas combativos, e nossas personagens ficcionais A Moreninha e a nossa cigana oblíqua e dissimulada (faz muito sentido na evolução da personagem, de romântica à realista). Ressalte-se que, em paralelo aos protagonistas, todo elenco brilha em cenas de qualquer tamanho, às vezes apenas com um olhar, uma fala, um gesto, um silêncio eloquente ou em uma marcha coletiva.
A trama é muito rica em
detalhes e referências que vão se costurando em nossa frente. Acredito que o grande
estalo criativo da obra é a reprodução do tempo passado no presente. Cenas
coloniais ligadas à geografia da escravidão como a captura violenta (vide Pai
contra Mãe de Machado de Assis), a fuga para as matas, o afrobunker em lugar
dos quilombos, acontecem na paisagem urbana do Rio de hoje. Bem como cenas do século XX e até de
nosso passado bem recente são reproduzidas numa espécie de espelhamento
atemporal.
A gramática da Ditadura Militar
está toda posta no Ministério da Devolução (Que nome e que ministro!), nos
porões, nos arquivos, nas portas fechadas, no discurso dissimulado que faz parecer
que um absurdo é uma dádiva, na votação da câmara (“pelo meu país, pela minha
família” XX E XXI). Essa dança cronológica enriquece muito o universo distópico
e mostra que o surreal coexiste em qualquer tempo. O “como deixamos isso
acontecer ?” de André é uma marca palimpsestica de que todos esses brasis estão
vivos e podem nos surpreender...
Atentem para o momento em que
a Medida Provisória é aprovada e o segurança da inspetora Isabel, referência explícita
ao nome da Redentora, atuação irretocável de Adriana Esteves, imediatamente
prende o seu colega “melaninado”, a cena soa como um eco da famosa fala de
Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva na ocasião do AI 5, “Presidente, o problema
de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O
problema é o guarda da esquina”. E o filme é cheio de guardas da esquina. Cenas
assim se reproduzem no filme, muitos e muitos ecos e intertextos gritam em muitos momentos.
Por falar em espelhamento, uma
das cenas mais fortes do filme se dá na morte simultânea de André e Santiago,
Pablo Sanábio, braço direito de Isabel que se arrepende por amor a Ivan (desculpem
o spoiller) e muda de lado. Cenas de brutalidade que se dão tanto na
superfície quanto no afrobunker, guiadas por razões diferentes, mas ambas pautadas no
ódio que cega, destrói a razão e gera dor. Outras de força latente é a cena do centro cirúrgico
invadido, a luta da namorada de André (Mariana
Xavier) tentando ajudar de todas as formas ou banho de André lavando a tinta btanca.
E é nesse afrobunker que
coisas lindas também acontecem, Dona Helenita/ Diva como uma espécie de
sacerdotisa da emoção, da razão e da ação, não
posso falar mais nada dela para não dar mais spoiller, Berto/Emicida trocando
armas por livros, a assembleia liderada pelo ancião numa atuação arrebatadora
de Hilton Cobra, a cortina de Capitu com fotografias de pessoas inspiradoras e as
aparições rápidas e marcantes de tanta gente iluminadora dessa luta contra o
racismo e outras violências (Tia Má, Luana Xavier e cia).
Não posso terminar sem falar
que a trilha sonora (Elza Soares, Cartola e cia, quanta Sapiência!), os
cenários, a fotografia, o texto, o figurino, esses merecem rios de caracteres, só
Dona Izildinha daria uma tese, só poderia ser vivida por Renata Sorrah com
aquela roupa, aquele cabelo e aquele discurso (conhecemos muitas por aí) e
ainda devo dizer que dá para rir muito em alguns momentos, afinal a Bahia dá um
trabalho danado, né não ? Até o Japa...Ó paí ó...
Precisamos de arte, precisamos de artistas, precisamos daquele soco catártico, daquele aplauso no final, precisamos de ficção, precisamos dessa “subersiva alegria”. Obrigada, Lázaro e cia, a gente te viu na marcha final (cameo) e esperamos te ver muito em trabalhos assim, onde você vai de mãos dadas com tanta gente linda...Agora, deixe-me ir, preciso andar, rir para não chorar...A marcha é contínua e continua ...
P.S. Os policiais todos aparecem de máscaras, e aí leitor?...
Texto de excelência!Estímulo marcante para a leitura do filme!Obrigada,Alana!!
ResponderExcluirVá assim que puder! Você vai gritar no final...
ExcluirExcelente texto, parabéns Alana, não tive a oportunidade ainda de assistir, vc me deixou com água na boca, sua análise perfeita como sempre, sou sua fã, bjs fraternos
ResponderExcluirAssista assim que puder, vc vai adorar! Abraços fraternos e comungantes...
ExcluirAlana, não me emocionava tanto vendo um filme nacional desde Bacurau. Ter assistido ao filme e encontrá-la, não por acaso - eu sei... eu sinto - na mesma fileira de poltronas do cinema, foi deveras significativo para mim. Não se faz necessário
ResponderExcluirdizer mais nada por aqui depois de ter lido teu texto acima, até por que seriam spoilers. Mas permita-me gritar mais uma vez...
FORA BOLSONARO!
Amigo, te encontrar lá na mesma mesa do banquete foi um presente...Acho superior a Bacurau em muitos aspectos.. Arte é terapia das melhores...Quanto ao coro final, sem spoiller...rsss
ExcluirAssisti na segunda. Arrebatador! E que análise, hein, pró! Um abraço!
ResponderExcluirAmei o seu texto. Só pra variar. Eu saí do cinema saboreando o filme. Durante a exibição eu sorri, chorei, me indignei e, sobretudo, me orgulhei. Nossa Bahia é mesmo muito especial!
ResponderExcluirParabéns, Alana
ResponderExcluirExcelente análise. É sempre importante ressaltar que passado e presente não são tempos estanques. O passado se atualiza no presente,nada fica pra trás,apenas aguarda o momento certo pra emergir e se fortalecer. Nesse movimento, os sujeitos se constituem, se confrontam e resistem com suas lutas e enfrentamos cotidianos.
E a marcha continua....
ExcluirExcelente, Profa Alana! Diria para que todos/todas fossem ver o filme, somente pelo seu texto...
ResponderExcluirObrigada, caro leitor! Se ainda não viu, corra....
ExcluirCom uma pressa imensa agora pra assistir. Que riqueza de análise. Você arrasa sempre, Alana. 👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾
ResponderExcluirQue felicidade essa análise!!!!!!
ResponderExcluirQue felicidade ter você por aqui!!! Obrigada por nos oferecer esse banquete!
ExcluirTexto maravilhoso, pró Alana.Assisti uma entrevista em que Lázaro Ramos comenta o filme. Fiquei louca para assistir e depois de sua análise,a curiosidade aumentou.Quando vi o nome Capitu comecei a questionar o que a personagem revelará.Com certeza,vale a pena prestigiar essa grande obra.Parabéns pela brilhante análise.
ResponderExcluirLi a seu texto agora ainda muito comovido pelas impressões do filme, que assisti ontem junto com meu filho, e tentando articular uma resposta para alguém que havia dito que era bem mais panfleto que cinema. Sua leitura atenta e sensível me ajudou a organizar tudo. Realmente, a Bahia dá trabalho.
ResponderExcluirObrigada, caro leitor. Acabei de ter uma conversa com um amigo sobre isso, acho que essa impressão de panfleto cabe muito mais para Marighuella,que é bom, mas cai num esquema programático, já Medida vai muito além justamente porque tem muitos excedentes de significado. Continuemos de olho...
ExcluirAlana, já assisti o filme e gostei muito. Seu texto é uma excelente avaliação , como sempre você faz.
ResponderExcluirExcelente análise, Alana, o filme é tudo isso mesmo.
ResponderExcluirFiz esse último comentário
ResponderExcluirCara Alana, depois de ler teu texto fiquei impaciente para assistir o filme. Acabei de sair do cinema e ainda estou sob o impacto de uma arte que provoca muitas reflexões, emociona, revolta... Reler teus comentários, me ajudou a entender alguns detalhes que eu não havia percebido. Obrigada!
ResponderExcluirDesculpe, não havia me apresentado. Sou Begonha Bediaga
ExcluirObrigada, caríssima Begonha.
ExcluirAmando acompanhar Pantanal e me viciar novamente numa novela e que texto maravilhoso!!!
ResponderExcluirRenata Fahl