Para
minha amiga Zélia Martins
Umas
das palavras de ordem, já gastas pelos seis meses de uso que vem perdurando a pandemia,
e que nos condenou, dentre outros sofrimentos, ao isolamento social, é o verbo
Reiventar. Mudanças de hábitos, de
regime de trabalho, de consumo, de lazer e de formas de se produzir novos
produtos culturais enquanto vemos gráficos e reportagens que nos deixam tensos
todos os dias e noites. Assim, a teledramaturgia, pão poético diário da maioria
dos brasileiros, também precisou pensar em outras formas para continuar levando
os fios da ficção para nossas casas.
Juntando
todos esses elementos, uma forma de contornar essa sombra foi a genial ideia de
Jorge Furtado de fazer uma série sobre confinados reais e seus sabores e
dissabores, com tramas muito semelhantes ao que muita gente está
experimentando. Famílias reais de atores fizeram de suas casas palco para essa
novidade deliciosa que nos traz um sopro de alegria, mostrando que a arte é uma
danada e que dá seu jeito sempre que possível.
Assim, fomos presenteados ontem, com um episódio belíssimo que retrata as agruras da convivência
forçada entre mãe e filha, com naturezas e pontos de vista completamente
diferentes sobre a vida, “esquerda carnívora” e “liberalzinha vegetariana”,
segundo elas mesmas em meio a uma discussão acalorada sobre matar um frango e
demitir funcionários. Briga que nos rendeu uma das aventuras mais cômicas do
episódio, a captura da penosa que não se entregou facilmente ao abate, teimosa assim como as duas protagonistas.
É
sabido que todas as famílias têm conflitos, mas espera-se de uma mãe de 90 anos
e uma única filha de meia idade, executiva bem sucedida, uma relação pacífica
ou ao menos cordial, ledo engano. Gilda e Lúcia são boas representantes da
bipolarização do nosso país que ficou nas entrelinhas desse programa de
estreia. Como também da condição dos nossos aposentados que não podem pagar um
plano de saúde e outras despesas e precisam que sua renda seja completada pelos
filhos. Questões nem sempre simples ou que também resultam em papéis
invertidos, quando a aposentadoria dos velhos é a fonte de sustento. No plano
da frente, uma deliciosa comédia familiar, no plano do fundo, um painel do país.
Um dos
topos mais presentes na Literatura Ocidental, para utilizar a terminologia de Ernest
Curtius no seu clássico Literatura europeia
e idade média latina, é o da velhice
tranquila e sábia, tema já presente em Sêneca e Cicero, sábios da antiguidade. Dona
Gilda contraria toda essa representação. Ativa, impulsiva, hedonista, ranzinza,
boemia, dentre outras qualidades ou defeitos a depender da medida, deu muito
trabalho para sua filha Lúcia, disciplinada, focada, responsável, séria, saudável
(com a ajuda de um ansioliticozinho, é claro), também qualidades ou defeitos a
depender da medida. E a convivência das duas isoladas em um sítio onde, de
fato, Fernandona e Fernandinha, cada vez mais parecida com a mãe, estavam
ilhadas com a família, não foi nada fácil.
Mas, de volta à convivência, vem de volta o amor que as unia, as lembranças, as
fotos, os risos, as estrelas, a boa mesa com o frango assado e uma boa taça de vinho (pode ser em copo de requeijão também, o que vale mesmo é a companhia), elementos que aproximam quem se quer bem e aparam arestas das
diferenças. E elas já não queriam que aqueles dias acabassem, era preciso
prolongar o prazer e a presença de ambas. Gilda toma suas providências cortando,
literalmente, a conexão com o mundo lá fora, outra cena incrível e muito simbólica.
E como uma boa obra de arte pode ser vivificante como aquela taça de vinho, ela
nos brindou com a esperança da notícia que todos esperam em todos os lares, a
vacina chegará, e a receberemos de braços e abraços abertos, mas sem esquecer
daqueles que se foram, porque assim é a vida, agridoce como as relações humanas
em qualquer tempo... Que venham os casais nessa nova Comédia da Vida Privada... Amor é Sorte!