A
série Segunda chamada, de Carla
Faour e Julia Spadaccini, com direção de Joana Jabace, tem roubado nosso sono
nas noites de terça-feira na Rede Globo de Televisão. Considerada pela crítica
como a Sob Pressão da educação, por
abordar de forma semelhante as mazelas da escola pública assim como aquela o
faz com a rotina de um hospital igualmente feito para o povo. Comparação deveras
pertinente, pois ambas são pautadas no realismo crítico e contundente do
cotidiano do nosso país através das problemáticas dessas instituições tão
fundamentais quanto maltratadas ao longo dos anos.
A
grande força da série fundamenta-se na construção dramática de suas
personagens, aliás, uma refinada construção de criaturas complexas. Cada professor
e cada aluno lutam com seus demônios individuais antes de cruzar o portão da
escola e os levam para dentro dela, onde duelam com outros tantos demônios
coletivos. Em cada face, um drama em chaga aberta e um sorriso tímido, com um desejo
único de fazer com que aquele espaço funcione. Apesar de tudo, todos depositam
alguma nota de esperança naquele prédio em decomposição, mas com sonhos
pulsando. Lúcia, a professora de português, personagem de Débora Bloch, é um exemplo desse tumulto entre o
individual e o coletivo. A atriz está excelente nesse papel que parece ser
talhado para ela, desde Justiça e Onde nascem os fortes vem se destacado
no drama.
A
classe noturna é composta por uma gama de alunos variados, adultos de todas as
idades que pelos espinhos do caminho não seguiram a cronologia esperada e
voltam para essa escola com todas as marcas da vida e os sonhos contornados
pelo mundo que lhes é possível (posso atestar de cátedra a verossimilhança
dessa série, já fui professora desse turno). Creio que toda sala de
aula é um microcosmo da sociedade e aqui não é diferente. Dentre tantos rostos
cansados, temos a jovem mãe com um bebê e o desespero nos braços, o motoboy
correria, a garota de programa, a senhorinha católica (Teca Pereira, ainda
quero te ver em grande papel), a transexual, o catador de lixo (José Dumont, hors concours, nosso eterno Severino), o
filho do diretor que leva bomba na escola particular, o pequeno traficante,
dentre outros tipos tão bem representados nessa caderneta viva.
Na
sala dos professores, os dramas humanos também se impõem com força. Temos a
professora muambeira buscando driblar os baixos salários (Thalita Carauta,
mostra que pode ir muito além da comédia), uma figura muito conhecida nas salas
dos professores, a mal casada (Hermila Guedes, brilha desde O céu de Suely) que
traz seu rancor para a escola, o jovem professor de artes testando seus limites
(Sílvio Guindane, também rompendo o humor) e o diretor dividido (Paulo
Gorgulho, seja bem-vindo de novo) entre a aplicação da lei e o bom-senso dentro
desse caldeirão multicultural que ameaça explodir toda semana.
É
interessante notar como os conteúdos das aulas são cuidadosamente trabalhados
em consonância com os acontecimentos extraclasse (os roteiristas tirando dez!).
Na aula de matemática, a professora ensina divisão mostrando o valor do salário
mínimo e acentuando quanto custa um dia de trabalho do assalariado. Na aula de História, a lição é sobre as Capitanias Hereditárias, justamente numa noite na
qual a escola estava alagada pela chuva e os professores e os alunos lutando
para conseguir um mínimo de espaço para as aulas acontecerem, excelente metáfora
da luta cotidiana de todos ali buscando driblar as intempéries e o pouco espaço
que lhes sobra. Na aula de artes, o professor que luta para ter suas aulas “inúteis”
preservadas, discute O Pagador de Promessas, lição literária sobre a intolerância
religiosa que vigora na escola onde uma imagem sacra fora quebrada minutos antes.
Mas
para além do currículo oficial, há o currículo oculto no qual aprendemos aquelas
lições que valem para toda vida dentro e fora dos muros da escola Carolina Maria de Jesus, nome emblemático por
sua obra que deu visibilidade aos excluídos, sendo ela mesma um autora
improvável, assim como os alunos dessa escola são cidadãos improváveis em meio a tanta precariedade. Dona Jurema aprendeu a respeitar
Natasha (Linn da Quebrada arrasando) e permitir que essa garanta seu espaço e
dignidade como mulher trans. O casal evangélico fundamentalista foi socorrido
na hora do parto pela jovem prostituta que ainda carrega sonhos (Mariana Nunes)
e foram tocados pelo afeto dessa mão antes desprezada, dentre tantos preconceitos
que se podem ser revistos nas “salas de aula” dessa escola. As lições estão postas,
quem tiver olhos para ver que vejam...
Antes
de concluir esse nosso dever de casa, não podemos deixar de mencionar a trilha
sonora de alta qualidade e com letras completamente espelhadas na trama através
de compositores e intérpretes variados (Emicida, Projota, Elza Soares, Gonzaguinha,
Belchior...). Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça, afinal esse ano eu morri,
mas para o ano eu não morro e Você merece, Vocês merecem assistir à Segunda
Chamada...Viva a arte, ela não cura nossas dores, mas ajuda a suportá-las...Educação pública, presente!