O famoso romance inglês O médico e o monstro de Robert Louis Stevenson, conta a história do
prestigiado médico Dr.Jekill que faz pesquisas sobre o comportamento humano,
numa dessas experiências acaba criando uma droga que faz vir à tona seu lado animal
adormecido, o Mr. Hyde (no inglês o verbo hide, esconder, ocultar; Mr. Hyde é a face oculta do bom Dr.
Jekyll), tal livro representa um dos maiores clássicos do terror psicológico,
bem típico do cientificismo da época vitoriana. É impossível assistir à série Assédio, exibida atualmente apenas no aplicativo
Globoplay (só foi ao ar na TV aberta o primeiro episódio), e não associar ao
livro publicado no século XIX e tantas vezes reencenado no cinema e nos
desenhos infantis. Só que na série, ao contrário do protagonista ficcional, o
médico é o monstro e infelizmente não é só um ser imaginário.
Baseado no livro A clínica: a farsa e os crimes de Roger
Abdelmassih de Vicente Viladraga, adaptado para a televisão pelo texto
preciso de Maria Camargo e direção de Amora Mautner, a série perscruta os
corredores da clínica (laboratório do médico/monstro) com seus insondáveis
segredos, a mente labiríntica de todos os envolvidos e, sobretudo, o sofrimento
individual das vítimas, mulheres que
buscam naquele sombrio local o milagre da vida que a natureza lhes negou, mas
aquele médico das estrelas poderia resolver.
Creio que muitos de nós já
conhecíamos o perfil do Dr. Roger, antes dos seus crimes virem à luz, de algum
programa da televisão ou revista semanal, nos quais ele expunha com toda pompa
e circunstância os bebês por ele vindos ao mundo, algumas vezes filhos de
celebridades que gostavam de repetir “foi Dr. Roger quem fez”. Auto apelidado de
Dr. Vida tal sua prepotência (na série Roger Sadalla), esse psicopata é
representado por Antonio Calloni com total competência, chegando a nos
provocar o asco inevitável. Todavia, passamos a ver sua migração das colunas
sociais e afins para as páginas policiais através da denúncia de mulheres vítimas
de seus ataques. A série é muito mais que a representação ficcional da história de ascensão
e queda de um monstro, ela é também a consagração da força das mulheres que se
uniram em prol dessa dor inominável, serem violentadas num momento de total
fragilidade.
Todas as vítimas tiveram
suas vidas destruídas ao cruzarem o portão daquela bela clinica que escondia
horrores em suas saletas de vidros baços onde à meia luz e, aproveitando-se
algumas vezes do torpor do anestésico, o monstro agiu impune por anos,
condenando essas mulheres ao sofrimento do silêncio, da dúvida, da escuridão e
da solidão tão bem retratados na tela por cenas escuras e ambientes fechados.
Destaquemos a qualidade
artística da produção tão rica em detalhes e potência simbólica (talento já
mostrado por Maria Camargo na adaptação de Dois irmãos). A começar pela música
de abertura, Silent Night, traduzida
para o português por Noite Feliz,
que simboliza a um só tempo a festa cristã, como também a silêncio e a solidão.
As mulheres com desejo pelo nascimento (natal) de filhos com ajuda da ciência
que lhe acenava, tinham seu sonho atravessado pela violência sexual que lhes
impingia o silêncio e o medo. Signo irônico presente na letra e na condensação
de sentimentos cristãos presentes na trama, que vão da culpa à falsa fé
apregoada pelo Dr. Vida. Na abertura também temos, como numa espécie de
caleidoscópio, diversas imagens aparentemente desconexas, mas que dão uma
unidade à história, a agulha, o sangue, as
pílulas, as imagens sacras dentre outras.
Quanto aos índices simbólicos
dos sentimentos vividos pelas personagens temos muitos exemplos. O cofre, onde
a sofrida esposa de Dr. Roger, Glória, vivida com maestria por Mariana Lima (uma
personagem de uma complexidade impar, na sua primeira aparição já é possível
perceber sua carga emotiva) guarda as fotografias das traições do marido aponta para
toda a sua agonia recolhida que acaba por se transformar num câncer que a mata lentamente assim como as imagens das câmeras,
segundo a fala de uma personagem, ela tinhas duas doenças, a outra era ele. A
relação edipiana do médico com sua mãe e a opressão com os filhos e netos nas
cenas da mesa/casa são sinais de quem era o homem de verdade na intimidade. A xícara
tão cheia que transborda inundando a casa da personagem de Adriana Esteves, vítima
com papel chave na narrativa com seu vestido vermelho e seu isolamento, uma
atriz completa que sabe ir da comédia rasgada ao drama absoluto capaz de nos
assombrar na série com seu silêncio eloquente. A cena da lâmina de barbear
interpretada pela baiana Maria José no banho, vivida por Hermila Guedes, outra
personagem que junto com Odair (João Miguel), seu marido caminhoneiro desonrado,
nos faz ter mais ódio ainda do criminoso. São inúmeros detalhes que compõem esse
intricado mosaico de dor que vai lentamente sendo costurado como num triler psicológico
de alta tensão.
Voltando para a força e
união das mulheres que só vão ganhar voz e luz a partir das redes sociais e de
ações investigativas encabeçadas na série pela jornalista Mira Simões que se
doa por inteiro para solucionar essa série de atrocidades, inclusive
negligenciando sua própria vida (a cena de Martim no carro é desesperadora) e
se encarrega de costurar os fios soltos durante tantos anos. Tal corrente em busca
de justiça vai ganhando corpo na abertura de cada episódio quando os nomes das
mulheres vão se enfileirando em série e crescem a cada capítulo, representação alusiva da força que ganham quando se juntam e rompem o cerco de silencio, fruto de uma estrutura social repressora que criminaliza a mulher abusada e põe seu drama sob dúvida.
É uma série muito forte, exige coragem para
quem a fez, exige coragem para quem a assiste, exigiu coragem de quem teve
coragem de denunciar e investigar, em muitas cenas fechei os olhos e senti
repulsa, nada comparado ao drama real dessas mulheres, contado individualmente
através de algumas delas. A justiça não foi perfeita, mas ao menos o ídolo foi destronado e já não poderá fazer mais vítimas. A vida pode ser muito pior que a arte e aqui muito além
do entretenimento, a teledramaturgia presta um serviço para a sociedade. Quando a
violência grita, grite. O silêncio pode criar outros monstros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário