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quarta-feira, 11 de julho de 2018

O ser tão profundo de Onde nascem os fortes


A série Onde nascem os fortes de George Moura e Sérgio Goldenberg, dupla de roteiristas e cineastas de grande talento, já demonstrado em obras como Amores Roubados, O rebu e O canto da sereia, vem chegando ao seu final com êxito e se mostrou ao longo da trama como uma obra de fôlego, complexidade, escolha de elenco impecável e narrativa instigante O horário das 23:00 h tem algumas vantagens e o fato de ser uma obra fechada também, os autores contam com total liberdade de criação e não sofrem interferências da audiência. Talvez a única queixa que tenhamos a fazer seja o seu tamanho, creio que menos capítulos resolveriam bem a trama sem grandes prejuízos para o enredo.
Um misto de road movie, conflito familiar e drama de vingança se entrelaçam numa história comovente que gira em torno dos filhos gêmeos de Cássia, a visceral mãe coragem de Patrícia Pillar. Maria (Alice Wegmann) e Nonato (Marco Pigossi), em busca de aventuras na natureza com suas bicicletas, saem de Recife e vem para Sertão desbravar trilhas. O fato de serem gêmeos nos põe diante do tema do duplo, mote tão explorado na literatura universal. Nonato com sua curta participação, funcionará ao longo da trama como um espectro a guiar o enredo. O seu desaparecimento muda todo o rumo dessa aventura dos jovens e faz Maria se transformar numa Donzela Guerreira que busca com força desmedida descobrir o que aconteceu com seu irmão. Notemos que ela é uma personagem meio andrógina, frágil e forte, com suas roupas vaporosas e seus cabelos curtos, em determinado momento se vestiu de homem com direito a chapéu de vaqueiro a la Diadorim. Aliás, as referências ao universo rosiano aparecem com força. Sertão esse lugar sem porteira.
O lócus da trama, Sertão, é um microcosmo do Brasil profundo, quase medieval, com leis próprias, ou sem leis, ou leis que derivam ao gosto dos seus representantes como o juiz Ramiro (Fábio Assunção) e o delegado Plínio (Enrique Diaz), tão convincentes em suas atuações que nos provocam asco, ambos beirando a psicopatia. A questão mística também é sintomática desse universo, a figura de Samir, mais uma vez Irandhir Santos mostrando que é um dos melhores atores da nova geração, é uma das grandes personagens da trama. Esse líder espiritual da Comunidade de Lajedo dos Anjos, uma espécie de Terra Prometida, com suas chagas de estigmata ainda sofre na carne e na alma as angústias humanas que precisam ser expiadas eternamente.
Pedro Gouveia (Alexandre Nero, talhado para protagonistas fortes), em principio parecia ser o grande vilão da trama, foi se transmutando ao longo dos capítulos e despertando nossa empatia. É o tipo que perdoamos as falhas morais em nome do seu outro lado, pai amoroso e homem justo. E o que dizer de Ramirinho (Jesuíta Barbosa, outra fera), com sua Shakira do Sertão, uma atuação tão compungente que nos arrebata com sua dor de Assum Preto ou de José Dumont, com seu mítico Zé das Cacimbas?
A trama seria apenas uma história de Crime Castigo, não fosse o amor que esbarrasse no caminho das personagens. Maria/Hermano/Walquíria/ Simplício, Pedro/Rosinete/ Cássia/ Ramiro e outras ligações perigosas. Destaquem-se também as mutações de Rosinete, brilhante Débora Bloch, de mãe sofredora e contrita a uma mulher que busca sua felicidade. A intensidade dos sentimentos que vão da posse ao amor sem reservas transbordam na nossa tela alaranjada como o sol e a poeira das estradas do Sertão.
Outro ponto a destacar na trama é a presença dos fosseis na história, o fato de Sertão ser um sítio arqueológico. Parece-me a grande metáfora da trama, as camadas a escavar do humano que sempre guardam grandes mistérios. O revolver da terra faz o tempo voltar e desencavar segredos insondáveis. Foram muitas cenas memoráveis até então, destaco aqui  uma que comoveu muito, Cássia desenterrando a cova de Nonato com as próprias mãos, encerrando sua busca pelo corpo do filho.
A trama já está chegando ao fim, como bons espectadores aguardemos que a justiça seja feita e os maus punidos, mas fiquemos sempre atentos, pois nem tudo é o que parece nas paragens do Sertão, afinal “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!”. Eu conto e vocês botam o ponto...



4 comentários:

  1. Análise crítica recheada de inferências literárias que norteiam o enredo desta instigante trama... Ler a teledramaturgia brasileira sob a ótica desta renomsda crítica literomidiática é um luxo! Sou fã!!!

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  2. Muito obrigada pela leitura colaborativa! Gostei muito do termo literomididiática!A renomada crítica fica por conta do seu carinho. Tenho feito esse esforço de trasnformar esse espaço em ambiente de diálogo entre literatura e teledramaturgia.

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  3. Alana, caríssima cronista do profundo em nós, até agora, me sinto de uma maneira que não sei explicar bem. Apenas te digo que um solavanco tomou-me todo desde quando li o título deste texto tão "alaranjado" como o sol do sertão... lugar da história tão dura... lugar dum "ser tão profundo"... lugar de onde nascem os fortes... os sozinhos... os filhos e filhas de Antonio, o conselheiro. Aprendo tanto com o teu "estilete esferográfico" tão bem amolado em navalha de adamantium. A descrição dos personagens e suas salvações pelo amor, ah, essa ferida que dói e que sentimos sim, mola protagonista de todo mote da dramaturgia e, ao revés, muito distante do que chamam de antônimo, o ódio, o que temos é o antagonista, o verdadeiro vilão tão bem desenhado na super série: o poder. Sim, o outro lado do amor é o poder. E se enganam os que pensam diferente. Ainda estou embevecido com o design de tua tecitura para descrever esse ser tão profundo carpindo a "metáfora da trama, as camadas a escavar do humano que sempre guardam grandes mistérios". "Cade você, que solidão".

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    1. Caríssimo Gutho, embevecida fiquei ao ler seu belo comentário, superior em muito ao meu texto. Você para mim é sempre um leitor em potencial, aquele para quem hipoteticamente escrevemos e sabemos que por ele, ao menos por ele, seremos compreendidos. É um presente tê-lo por perto, nas tramas da ficção e da vida! Amolemos sempre nosso estileite juntos, no amor e na dor e em tantos dias alaranjados sorriremos e choraremos juntos da arte e das durezas cotidianas!

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