Encerrou-se
essa semana a novela A Força do querer de Glória Perez. Novela polêmica,
carregada de discussões que dividiu o país e obteve excelentes níveis de audiência,
termômetro inquestionável dos seus muitos acertos. Dentre esses acertos destaco
o cuidado da autora em lançar sua câmara sobre todos os núcleos dando vez e voz
a praticamente todas as personagens, jogando luz não só sobre os protagonistas
(aqueles que primeiro lutam), mas deixando brilhar também os muitos
coadjuvantes que desfilaram pela trama. Foi uma novela multiplot, com diversas
temáticas sendo trabalhadas simultaneamente, alternativa exigente que nos faz
acompanhar a narrativa atentos aos muitos lances de dados que estão sendo
jogados todo o tempo.
Silvana,
brilhante Lilian Cabral, nossa Meryl Streep, nos colocou diante do vício do
jogo, tão destrutivo quanto qualquer outra dependência, ela pôs todos ao seu
redor em risco, atolando-se a cada dia mais em mentiras e rebaixamento moral e
pessoal, só assumindo sua doença nos lances finais e perigosos do jogo (o
resgate de Simone foi uma reprodução de um episódio real).Tema ainda inédito e
muito bem trabalhado, sobretudo, na figura de uma personagem feminina, de alta
classe social. Ao lado dela, acho que tivemos um dos melhores núcleos da trama.
Seu marido Eurico, o típico homem conservador, chefe de família que acha que
tem o controle de tudo, deu a Humberto Martins o melhor papel de sua carreira. Sua
relação com Nonato foi um dos pontos altos da novela, sua descoberta do grande
segredo foi hilária, daí guardado para o finalzinho para ter aquele sabor de sua
surpresa. A fala de Biga bem o definiu: “Seu
Eurico dá um jeito de encaixar os seus afetos no seu modo de ver a vida...”
Então Nonato pode ser artista, mas fazendo os machões Jece Valadão ou Capitão
Nascimento, um Nonato que só ele via, mas ao final, ele já sugeriu Hamlet,
personagem ambíguo...Ser ou não ser...
Ritinha,
nossa sereia, descendente direta de Gabriela Cravo e Canela, não se rendeu às
convenções, movida exclusivamente por seus desejos, só fez o que quis e pisou
fundo no coração de Zeca e Rui, mas mesmo assim emanou uma empatia com sua
brejeirice (Égua!) que fez com que aceitássemos seu exotismo, com direito a
foto de família no sofá dos Garcia com os dois pais de seu filho e a união
fraterna de Rui e Zeca ao desvendar o mistério mítico das águas.
Um
dos temas mais palpitantes da trama foi sem dúvida a transição de Ivana em
Ivan, vivida pela Carol Duarte que deu um show de atuação num papel tão
difícil, com todas as dores e estranhezas que trazer esse assunto para a sala da família brasileira
causa. A autora foi extremamente didática e sensível com toda a rede de
questões que envolvem tal assunto e deu a Ivan um final glorioso e
surpreendente ao lado de Claudio que a aceitou ao reconhecer que naquele novo
corpo ainda habitava a alma pela qual ele havia se apaixonado, e a cena tinha que ser na praia, na natureza,
onde ao contrário das convenções da cultura, tudo pode acontecer em matéria de
afetos.
Muitas
tramas paralelas tiveram a chance de aparecer na telinha, a psicopatia de Irene
com seu final de filme de terror descendo aos infernos, as relações entre
patrões e empregados que fogem aos modelos meramente legais, o estilo de vida
da comunidade com seus muitos tipos psicológicos, a chegada de Elvirinha e Tio
Garcia que nos rendeu ótimas cenas já do meio para o fim da novela, com justas
homenagens a Betty Faria que reviveu sua Tieta (Dançando Funk ou vestida de
Mulher Maravilha e sua Lucinha de Pecado Capital, dinheiro na mão é vendaval).
Cheguemos
ao núcleo central do tema do tráfico de drogas carregado nas tintas da
verossimilhança, com direito a todas as críticas possíveis ao nosso sistema
judicial e carcerário (a expressão enxugando gelo foi várias vezes repetida). A
força dos traficantes em seus domínios, as imagens de guerra e guerrilha no
último capítulo, a permanência do crime e sua força a despeito de muitas ações
de combate, o fascínio que esse submundo exerce para muitos. A autora
escancarou as veias abertas de um dos nossos principais problemas sociais e ao
contrário das críticas sofridas por setores da sociedade, a novela não inventou
nada dessa realidade, ela espelhou uma pequena parcela do que de fato ocorre
naqueles becos e vielas labirínticos. E como boa ficção que é, criou um Sabiá
misto de bandido e herói popular com sua boa dose de humor “poblemático”,
pedindo a senha do wifi na cadeia e lendo o Salmo 91.
Bibi
Perigosa, personagem real, teve sua redenção, expiou suas penas e se regenerou
como boa cria folhetinesca, teve direito ao seu final feliz ao lado do
Cavalheiro Andante Caio, representação positiva (ao lado de Jeíza) da polícia e
da justiça. Como protagonista ela cumpriu seu percurso heroico de ascensão no
crime, queda moral e retorno à luz através da expurgação e consciência do erro.
O seu reencontro com Caio, para ele ela sempre foi Fabiana e nunca Bibi, foi marcado
pelos versos do Poema em Linha Reta, do heterônimo Álvaro de Campos de Fernando
Pessoa, apontando que todos somos carregados de falhas, mas que só poucos têm
coragem de assumir ( “Nunca conheci na vida quem tivesse levado porrada!”), a vitória
do perdão sobre o ódio esteve presente nesse final sob vários modos. Destaquemos
na trama de Bibi a atuação de Elisângela, como uma mãe arquetípica que tudo fez
para salvar sua filha e para o menino Dedé, vítima indefesa dos erros dos pais,
fez um papel forte para uma criança, que tinha a fuga para a fantasia ao lado
da amizade de Goku.
A Força
do querer ficará marcada no imaginário brasileiro, ganhar um Globo Repórter é
para poucas novelas, mostrando sua penetração na sociedade e o desconcerto que
causa as obras polêmicas. Ao lado da força do real retratado na trama venceu de
fato, a força do querer. Com suas novidades narrativas ousadas inovando até o
último dia com a narração de Tio Garcia, um sábio anti-herói, nos pondo a par
dos desdobramentos de cada personagem...Terminamos com os versos de Menotti Del
Picchia que ele disse para Rui ao mandar que ele perdoasse Ritinha e que resume
bem a vitória dos afetos no final da trama, apesar de toda a realidade que
sangra ao nosso redor: Esta vida
é um punhal com dois gumes fatais: não amar é sofrer; amar é sofrer
mais"!
Fã de Glória Perez, acredito que ela se superou com essa trama que findou sexta-feira, 20/10. Como bem disse você, Alana, foi um folhetim "multiplot": diversas histórias entrecortadas... cingidas com uma mesma linha temperada com "seró" que cortou corpos e almas com força, com querer. Definitivamente, Perez estremeceu o horário nobre de forma a nos fazer esquecer, por horas, das mazelas reais do país. O folhetim sendo, por vezes e doses cavalares, cura para a nossa cultural resignação nacional diante do caos real em que vivemos. Que Glória não demore a voltar, pois não podemos viver sem essa alegria que é apreciar o seu texto mais uma vez. Salve Glória! Salve, Glória.
ResponderExcluirObrigada, amado leitor e companheiro de ficção, sigamos em frente nos deliciando com o poder da ficção sobre nós, não cura, mas ajuda a atenuar as dores do mundo!
ExcluirAlana, como é bom ler os gestos de interpretação ricos e coerentes que você produz sobre o texto de Glória Perez. Por isso, quando encontro algumas pessoas falando mal da novela, limitando o comentário ao superficial, ao literal, eu peço: dá uma olhadinha no Blog chamado Entretelas! rsrs Como toda obra, é direito do leitor não gostar de todos os núcleos/dramas/histórias contadas ou não se entregar ao pacto ficional. Mas negar o sucesso da trama, acusar a autora de incitar (??)violência e não reconhecer a contribuição da novela para a provocação de debates urgentes e necessários na sociedade, aí é demais...Parabéns pela análise, adorei!! Beijoss
ResponderExcluirObrigada pela leitura atenta e colaborativa, como professores e leitores não podemos deixar de ver o papel cultural das novelas no nosso país.
ExcluirParabéns pela análise.
ResponderExcluirRealmente esta novela nos trouxe temas bastante polêmicos e, pelo menos para mim, bem distantes da realidade, com dificuldade de aceitação e compreenssão, não por preconceito, mas talvez por falta de conhecimento mesmo.
Obrigada, a novela nos põe diante de espelhos que nem sempre conhecemos e nos provoca a olhar melhor para o que nos rodeia.
ExcluirObrigada, cara leitora, sigamos tecendo fios na ficção e na vida!
ResponderExcluirQue beleza e alegria poder ler seus textos, Alana! Tudo tão bem fundamentado e bem escrito, que no final ficamos querendo mais... Parabéns! Bjos, Ângela Vilma.
ResponderExcluirOlá, que alegria vc. por aqui! Apois, aeronauta,voemos com a nossa dose diária de ficção vital!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTambém adorei a novela; e o final foi um dos melhores que vi na minha vida de noveleira. O amor de Ivan e Cláudio me emocionou bastante. Gostei de seu olhar analítico: ter percebido o locus onde este amor se reconciliou com o mundo: na praia, na natureza, esta que nada julga, apenas congrega.
ResponderExcluirNunca pensei que fosse elogiar alguma novela da Glória Perez um dia e achei que depois do Velho Chico iria ficar sem ter o que assistir. As vezes é muito bom estar enganado. Não vou enxugar gelo, mas vou chover no molhado: que beleza de análise e que capacidade de enxergar bem além da sinopse. Parabéns.
ResponderExcluirObrigada, Chef. Essa Glória também me surpreeneu positivamente, nunca gostei do seus exóticos Clones e Índias! Foi uma grande novela urbana com notas de Parazinho!
Excluir