Entre
14 de março ( Dia da poesia) e a noite de ontem ( Vésperas das eleições
municipais) o Brasil acompanhou Velho Chico, casamento feliz entre poesia e realidade. Novela que dividiu opiniões, não
foi líder de audiência, desagradou muitos, mas na minha visão e na de tantos
outros telespectadores entrará para a história da teledramaturgia brasileira
como uma de suas melhores produções. Usando um trocadilho inevitável, será
lembrada como um divisor de águas de nossa televisão. Esse texto final que ora
escrevo, será o nono sobre a trama, por absoluta falta de tempo de escrever
mais, pois cada capítulo suscitava em mim o desejo de correr à pena.
Creio
que o principal já disse ao longo desses 6 meses, mas para louvar o final é
necessário atar algumas pontas da arte e da vida. Guerra entre famílias e dentro de famílias, amores proibidos, coronéis
déspotas, cidadezinhas perdidas no sertão, padres conciliadores, heróis idealistas,
tudo isso já foi contado e recontado ao longo dos 50 anos da novela brasileira,
motes igualmente cantados em prosa e verso na nossa literatura. Então o que fez
de Velho Chico algo especial? Um amálgama de temas, cores, formas, mitos,
fotografia, lendas, arte, música, mistérios, texto, real e fantasia, planos paralelos, misturados
em dose especial. Afinal se não houvesse magia nas receitas todos nós podíamos fazer
os mesmos pratos com os mesmos ingredientes, mas sabemos que isso não é possível...
Há segredos insondáveis que geram resultados inusitados...
Primeiro
destacaria a direção de arte, com sua riqueza de detalhes, olhar de míope para
as miudezas desse sertão. Podemos nos extasiar de beleza com os detalhes
presentes nas festas religiosas, nos altares dos santos, nas fotografias das
paredes, no fogão de lenha, nas rezas, nos velórios, dentre tantos outros
pormenores que fizeram a diferença.
A
trilha sonora foi um espetáculo à parte. De Tom Zé (a música parecia sob medida
para o Saruê) a Ednardo, de Geraldo
Azevedo a Xangai, da sanfona de Luzia ao forró do Bar de Chico Criatura, de
Legião Urbana às ladainhas e aboios, dos boleros de Iolanda à belíssima Margem (“Há
um rio afogando em mim”) e uma menção honrosa para Maria Bethania que nos
acalentou com seu dom divinal em vários momentos da trama. A narrativa nos
brindou com um concerto variado de vozes e ritmos que por si só já valia acompanhá-la,
a musicalidade foi uma protagonista
paralela. Vale lembrar ainda do canto doloroso
da “Rasga mortalha” para anunciar cada morte iminente...
Outro
aspecto digno de nota foi a possibilidade generosa dos autores de dar espaço,
vez, voz e cenas arrebatadoras não só para os protagonistas, mas para todas as personagens
secundárias. Todas tinham uma história e tiveram oportunidade de nos contar.
Como num rio principal que é alimentado pelos seus afluentes, todos tiveram
seus momentos de glória. Destaquemos nesse final: Dona Ceci e Dalva (meus aplausos para Mariene de Castro, grata revelação) como personagens simbólicas
de questões identitárias que ganharam solos dignos de ópera nessa última
semana. A rezadeira chorando a morte de seu Deus e a doméstica rompendo seus
grilhões e ainda estapeando o coronel genérico. Ciço também merece nosso olhar,
personagem que saiu das trevas para a luz através do amor e da arte. Seu final
ao lado de sua “Darva” foi apoteótico, saíram das coxias para os palcos como
uma trupe mambembe que vai disseminando alegria por onde passa, mas antes disso
tomou a benção do Seu Painho (revivendo Renascer) que pode retomar com ele
resíduos da paternidade negada a Martim.
A
intertextualidade gritou tão alto nessa novela que poderia me ocupar disso por
dias (e devo agradecer a vários amigos-colaboradores que sempre estavam me apontando mais
alguma citação), lembraremos de alguns. Romance de 30 com destaque para Jorge
Amado e Graciliano Ramos. Guimarães Rosa em tantos momentos com seu sertão
mítico, físico e metafísico (Terceira margem do rio reinou). Os amores
proibidos de Shakespeare, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Nesse final
tivemos a citação direta de Dom Quixote e seus moinhos de Vento, Ecos de Rei Lear, releitura da tentação de
Cristo com o Demônio Saruê x o Cristo Afrânio, e este venceu despindo-se do coronel grotesco
que aprisionou sua alma. Retomou-se o
galo do início da trama, páginas de Gabriel Garcia Marquez (todo épico volta ao
princípio). No primeiro capítulo o galo era do pai de Afrânio e ontem esse o
passou a Miguel. Um símbolo de “macheza” que deveria ficar com o homem da casa
doravante. Aliás, o belo diálogo entre avô e neto circulou entre os mistérios
da existência...Quem nos explica?...Natureza, Deus, destino, perguntas que nos
acompanharão eternamente...
No
quesito “social” a novela navegou muito bem, singrando as margens e barrancos das injustiças
sociais, corrupção, jogos de poder, delações e tantas outras pautas que
poderiam nos confundir com o noticiário que nos rodeia. Deixando uma mensagem
de esperança através da participação popular e de novas pessoas propondo uma
política diferente do que temos. Bento e Beatriz, vocês deveriam existir fora
da tela e os coronéis perecerem de sede como Carlos Eduardo...
O capítulo
final, apesar da melancolia incômoda pela ausência bruta do seu protagonista, apresentou
um tom também esperançoso. Com nascimento, casamento, frutas, chuva, broto, flores e vinho nos
sinalizando que a vida segue em frente e mais uma vez todos reunidos à mesa,
espaço sagrado de conciliação (mitos primaveris). E como não podemos terminar sem lembrar da
fatalidade que cruzou esse rio... A homenagem ao nosso Santo, colhido pelo
Gaiola dos Encantados para nosso espanto e tristeza, o trouxe de volta à vida
pelos fios da ficção...E ele segue navegando no Velho Chico e na nossa memória
afetiva...Essa história não acaba aqui, segue conosco, por isso minhas
penúltimas palavras, haverá sempre um rio afogando em nós...Nunca houve uma
novela como Velho Chico...
Dadas as distâncias entre o princípio e o que não se acaba, uso de suas e outras páginas, Alana, e, mesmo com este rio afogando-se em mim, eu grito: "nunca houve uma novela como Velho Chico"! Ponto.
ResponderExcluirMeu amigo dos clãs, mais Anjos que Sá Ribeiro, esse rio continuará correndo em nós e nos afogando de tanta beleza...
ResponderExcluirAlana pesca os detalhes, as sutilezas, as sugestõees - e mergulha nas águas da narratiiva, sem cair em seus redemoinhos. Seus comentários, análises e interpretações nos levam a enxergar os pontos diferenciais da trama televisiva do Velho Chico, pelos acertos e exuberâncias, para além de suas limitações. Nunca houve uma novela como Velho Chico, é verdade, em que a realidade, a ficção e cultura se misturaram, com tamanha exuberância de diálogos, cenas, enredos, imagens, poesia e alegorias. Poderia ser melhor, se houvesse mais adequação sociocultural ao verdadeiro nicho cultural barranqueiro. Mas tudo bem, isso podemos ler nas páginas dos romances sanfranciscanos, nos romances de Wilson Lins ( O reduto, Os cabras do Coronel, Militão sem remorso) ou no romance "Porto Calendário", de Osorio Alves de Castro, obra-prima da ficção do médio São Francisco, ou o romance contemporâneo "A Dama do Velho Chico", de Carlos Barbosa. Quem não viu, perdeu. Quem viu, vale a pena ver de novo. UM ABRAÇO.
ResponderExcluirAleilton, se até Nhô Guimarães Fonseca rendeu-se aos encantos de Velho Chico, estou certa...foi uma grande novela. Continuemos essa nossa prosa inesgotável...Mire e veja!!
ResponderExcluirAlana, ontem fiquei muito emocionada com o final dessa novela, e agora revivo e reavivo essa emoção ao ler seu texto, nascente que aflora nossos sentimentos e vai continuar desaguando em seus leitores a vontade de ler linhas tão preciosas e de uma sensibilidade sem igual. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, cara Marcela, essa novela mexeu conosco de uma forma especial. O conjunto da obra e o braço do destino nos deixou em suspensão...continuemos em diálogo...
ResponderExcluirAlana, seu texto mais uma vez traz um olhar ao mesmo tempo que sensível, ampliado para sutilezas da trama e para os diálogos que ela trava com outras artes.
ResponderExcluirAcompanhei Velho Chico de longe, mais guiada pelo seu olhar mas tive o prazer de assisti à cena em que o Coronel tal qual dom Quijote enxergou nos moinhos agruras do viver... Foi lindo
Sim, sobretudo para vc. conhecedora do Sertão...continuemos aboiando novas travessias...
ResponderExcluirUm espetáculo que vai deixar é saudade. Prometia desde o começo ser um novelão e cumpriu, mesmo com essa fatalidade terrível no final. Não precisou de muitas tramas secundárias, saiu daquela sequencia de morro/cidade/favela das novelas anteriores e ainda deu uma boa inovada na qualidade técnica. Como você diz aí em cima, foram várias receitas comuns, mas com um toque especial de Chef. O elenco deu mais que o suficiente, mas para mim a melhor ainda é a Dona Encarnação – fiquei surpreso quando vi a atriz no Jô Soares, que transformação incrível. Pode não ter agradado muita gente, mas principalmente pra quem foi nascido e criado na roça (não necessariamente no sertão nordestino), essa obra foi como uma espécie de álbum fotográfico, daqueles que a gente guarda no fundo da gaveta, mas revive tudo se emociona toda vez que olha. Parabéns pelo(s) texto(s).
ResponderExcluirObrigada, concordo com cada palavra...foi um novelão que guardaremos nos sertões de nossa alma...
ResponderExcluirLana....a cena mais bonita desse final foi o diálogo de Dona Ceci com Afrânio.... falando da imortalidade de Martin e nos fazendo pensar na imortalidade de Domingos...
ResponderExcluir"Quem o senhor tá procurando não tá em lugar nenhum, pelo menos, não do jeito que o senhor tá procurando...Martin pode ter ido desse plano, mas o espírito dele não vai é nunca...O corpo dele foi....mas a presença dele vai tá em tudo e em todo desde então...Está no ar que respiramos, nas águas que correm nesse rio, no vento que sopra, em tudo...E para sempre vai estar.
Amém, Ceci...Amém, Domingos... Amém, Velho Chico!!!
Amem, continuemos nosso diálogo encantado sobre a magia dos bons textos...Sim, uma ideia panteísta de Deus e o do homem...Novela profunda e caudalosa como o Velho Chico...
ExcluirAlana, preciso parabenizá-la pela primorosa resenha, se é que posso nomear assim seu diálogo conosco. Você conseguiu traduzir sentimentos que brotaram em nós ao nos debruçar sobre textos carregados de lirismo e denúncias social de nosso tempo. A meu ver um dos aspectos mais preciosos dessa arte foi sobre o plano paralelo. Simbologias com O Velho Chico e suas correntezas no seu rito de passagem entre o material e o espiritual e o barco como meio de travessias para uma possível "Terceira margem" foi de emocionar. Parabéns mais uma vez!!!
ResponderExcluirOlá, Tinta...Obrigada pela leitura atenta e colaborativa...Sim, os planos paralelos foram um espetáculo à parte e por isso difícil de entender por muitos...Continuemos na terceira margem dos textos ...
ExcluirVontade de aplaudir
ResponderExcluirObrigada, que bom encontrar leitores que comungam de nossos olhares...
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