“A literatura existe porque a vida não basta” Fernando Pessoa
Pela proximidade de tempo
que falta para o fim de Velho Chico iria escrever novamente sobre ela só depois
que o seu final fosse ao ar, para fazer uma avaliação geral dessa estupenda
trama, mas a força do capítulo de ontem me impôs que viesse aqui fazer esse
texto, uma espécie de parêntesis antes da conclusão.
Os expectadores dessa
excepcional novela devem ter sentido as mesmas emoções que eu senti ontem ao
assistirem à solução ficcional escolhida pelos autores/diretores para driblar a
ausência do seu protagonista. Ele teve que sair bruscamente antes da festa
acabar, num roteiro canhestro escrito pela dramaturgia irônica da vida.
Roteirista cruel e mal assessorado pelos contrarregras e continuistas que nos
deixarão sem respostas para tão malvado desfecho. De forma bela e sensível, sim
também há beleza nas coisas tristes, eles transformaram a ausência em presença
através dos recursos técnicos proporcionados pelos fios mágicos da arte.
Santo foi ontem um espectro
de olhar panóptico que acompanhava todos ao seu redor e por eles era também acompanhado.
Ele foi a câmara clara que tudo vê e é separada dos outros por uma espécie de
neblina que embaçava sua percepção e a nossa também, divina metáfora de um muro
invisível que separa o mundo dos vivos e dos mortos. Depois de sua partida toda
novela passou a articular sentidos dobrados, jogos de linguagem, alegorias
variadas que parecem incessantemente remeter à sua morte e a de todos nós. É
como se todas as cenas posteriores ao seu desenlace, de alguma forma, portassem
um sentido duplicado que aponta para a “indesejada das gentes” que o colheu na
terceira margem do rio e o pôs como passageiro da Gaiola dos Encantados. Tudo parece
deixar no ar notas de incenso, cheiro de velas e todas as músicas soam como um longo réquiem.
Duas cenas ontem exigiam a
presença de um pai, o jantar de noivado e o casamento de “seus filhos”. A cena
da mesa, amplamente explorada pela literatura como lugar de comunhão, pôs Santo
na cabeceira, lugar onde devia estar e cada olhar das outras personagens indicava
sua presença. A fartura da mesa, a reconciliação com Luzia, o anúncio da
gravidez, o brinde com vinho formaram um buquê de imagens vivificantes que
apontam para a continuidade da vida, apesar dos dissabores, apesar dessa
exigência bruta de seguir adiante sem nossos afetos. Todos que já viveram suas
perdas, já sentiram o que os atores sentiram e transmitiram ontem, essa ausência-presença
daqueles que se foram para o undiscovered
country, sobretudo, nas datas festivas como eternizaram os versos da canção
popular “naquela mesa está faltando ele e
a saudade dele está doendo em mim”.
A ficção também pôs Santo no
altar na condição de pai emocionado que leva os filhos ao enlace. E o padre em
seu eloquente discurso cruzou a ficção de novo com a vida ao falar daqueles que
não se fazem presente em corpo, mas em espírito. A vida passou uma rasteira
na arte, mas a arte com seu poder incalculável driblou a vida e manteve vivo Santo
dos Anjos, pena que só pelo breve instante da ficção. E deixo aqui minha eterna
admiração para os atores das cenas de ontem, a vida e arte exigiram muito
deles, muito mesmo. E todos eles captaram a lição de Drummond no poema:
Ausência
Por muito tempo achei
que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Coerente e maravilhoso comentário. Aguardemos o seu final.
ResponderExcluirObrigada, minha Flor, nós sabemos dessa ausência-presença! Aguardemos o final dessa correnteza de emoções...
ResponderExcluirDas possibilidades, o dito impossivel: ei-lo em luz - a câmera brilhava - e voz. Santo vive lá e aqui nestas bem traçadas linhas. E, depois de tudo, o que sobra é o plural não dito de "então". A reverencio,Alana, e te peço a bênção, ao som de de um antigo samba baiano cantado na voz de Mariene de Castro.
ResponderExcluirEta, amigo, creio que teremos crise de abstinência nas próximas semanas...obrigada, vc tem papel especial nessa história...e quero meu samba, meu ritmo preferido...
ExcluirDas possibilidades, o dito impossivel: ei-lo em luz - a câmera brilhava - e voz. Santo vive lá e aqui nestas bem traçadas linhas. E, depois de tudo, o que sobra é o plural não dito de "então". A reverencio, Alana, e te peço a bênção, ao som de um antigo samba baiano cantado na voz de Mariene de Castro.
ResponderExcluirOs amantes da novela Velho Chico com certeza se emocionaram muito ontem! Excelente texto!
ResponderExcluirObrigada, uma grande novela para leitores sensíveis...
ExcluirComo já mencionei antes, passei a me interessar por essa novela a partir dos seus comentários. Me emocionei com o capitulo de ontem tão bem relatado nesse texto. Parabens!!!
ResponderExcluirP.S. O poema é da sua autoria?
Que bom, mas você só gostou porque tem sensibilidade para o belo das grandes obras...o poema é do grande Drummond..
ExcluirQuerida professora Alana, nada tão presente quanto um ausente bem representado. O capítulo de ontem, pareceu me um dialogo com o telespectador e os familiares de "santo", sobre perdas e finitude.Muito bom conversar sobre o tema, um enorme abraço
ResponderExcluirObrigada, minha cara colega, sim um grande diálogo sobre morte/vida, ausência/presença, e mais ainda uma bela homenagem ao ator...
ExcluirMais um belo e preciso texto, Alana!
ResponderExcluirObrigada, a obra suscita tantas questões que nos deixa em êxtase...
ExcluirAlana, mais uma vez, um texto de finíssima sensibilidade. Ontem fomos o olhar de Santo. Lemos o texto narrado em primeira pessoa, adentramos os bosques ficcionais para ampliar a vida. Parabéns! Beijos!
ResponderExcluirOs bosques ficcionais, no nosso caso, nosso feijão e nosso sonho...continuemos...
ExcluirMinha pró querida. Ao ler seus textos sobre essa obra, fico triste em não poder acompanhar seu enredo. Saiba que me vem água na boca. Ai , que saudades que tenho de sentar em frente à TV e apreciar as novelas como fazia há tempos...
ResponderExcluirTambém já trabalhei anos a noite e me sentia assim...a novela é uma obra de arte mesmo das melhores...depois vc vai vendo na net...
ExcluirMinha pró querida. Ao ler seus textos sobre essa obra, fico triste em não poder acompanhar seu enredo. Saiba que me vem água na boca. Ai , que saudades que tenho de sentar em frente à TV e apreciar as novelas como fazia há tempos...
ResponderExcluirAlana, eu não consegui mergulhar na ideia de que Santo dos Anjos estava presente... E me revelei incomodada com aquela ausência. Fiquei deveras triste! :( E vamos adiante!
ResponderExcluirNo início da sequência também senti esse grande incômodo, depois me permiti mergulhar...
ExcluirAlana, eu não consegui mergulhar na ideia de que Santo dos Anjos estava presente... E me revelei incomodada com aquela ausência. Fiquei deveras triste! :( E vamos adiante!
ResponderExcluirAlana, foi (mais) um capítulo emocionante! Um misto de tristeza e emoção ao assitir ao binômio ausência-presença de Santo!
ResponderExcluirSim, cara leitora, como a dores da ausência que sofremos no mundo real, mais um cruzamento de fronteiras...fingir que é dor a dor que deveras sente
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