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domingo, 4 de setembro de 2016

Justiça: Crimes, castigos e narrativa prismática


A minissérie Justiça, escrita por Manuela Dias, autora que já mostrou a que veio em  Ligações perigosas, tem nos surpreendido a cada capítulo com sua narrativa sofisticada que sonda os limites da moral humana. Através de 4 histórias, aparentemente independentes, a trama tem mexido com nossas emoções e piorado a noite dos insones, já que cada caso continua conosco sem chances de fazer calar. Eles ficam ecoando em nossa consciência e nos coloca em constante dúvida sobre os dilemas dos protagonistas.
 
Cada história, cada uma a seu modo, através de vidas interrompidas por fatos destruidores, se assemelha por cumprir um ciclo temporal de 7 anos e confundir as relações binárias possíveis entre  crime/castigo, justiça/injustiça, vingança/perdão. É difícil, diria impossível, escolher qual é a  mais profunda. Ao lado dos dramas principais que vai do assassinato à eutanásia, do tráfico ao estupro, temos infinitas tramas paralelas, como o preconceito racial, os vídeos vazados, as campanhas políticas, a prostituição, as gritantes diferenças sociais (a cena do cemitério com Rose procurando o túmulo da mãe foi sintomática desse abismo que separa as classes na vida e na morte), a crueza dos presídios, as relações trabalhistas, os meandros do direito, dentre tantos outros. Aliás, esse último é explorado nos seus diversos sentidos. Houve uma cena que julgo ser o eixo da série.

A personagem Elisa, vivida por Débora Bloch, mãe da filha assassinada pelo dantes bad-boy Vicente (a cena da morte foi talvez a mais forte até agora, uma releitura comovente da Pietá),  é um professora de Filosofia do Direito e no início de sua aula ela falava sobre o conceito de moral que sustenta essa disciplina e narrava alguns casos para que os alunos opinassem de acordo com o conceito de moral de cada um. Esse parece ser o mote da trama. A série nos coloca na condição de jurados e para nos dar elementos para esse julgamento vai narrando os casos através de diversos ângulos do social e do humano. E se as histórias em si são pungentes e carregadas de dor, a forma de narrá-las é um espetáculo extra.

Através de uma narrativa prismática, somos convidados a mirar cada drama sob variados pontos de vista, não cabe nessa trama opiniões absolutas sobre nada. Tudo é e não é a depender do foco de luz lançado sobre o prisma. A estratégia narrativa cruza as histórias de uma forma surpreendente, encaixando os fios e tecendo uma espécie de tapeçaria na qual tudo acontece ali do nosso lado, mas só é realmente importante o nosso problema, exatamente como na vida.

Destacam-se também a qualidade dos diálogos, a trilha sonora, a caracterização das personagens (Adriana Esteves espetacular), a cidade de Recife que também ocupa um lugar de personagem na trama, como espaço tentacular, ora solar, ora sombrio, ora becos, ora avenidas, ora biroscas, ora restaurantes finos. Eis uma série que marcará a nossa dramaturgia e nossas memórias e alimentará nossa insônia com os fantasmas morais que são deles e agora nossos também. Continuemos na nossa posição de júri e de espectadores /expectadores ávidos por Justiça.

 

 

21 comentários:

  1. Realmente, Alana! As narrativas estão se juntando e a sensação que tenho é que daqui um tempo, as histórias não terão mais como se separar! ��

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  2. Alana, comecei a acompanhar Justiça após a estreia e não consigo parar de assistir. As narrativas são densas e, como você bem destacou, nos impõem o papel de jurados perante os dilemas contados. E cá ficamos nos perguntando:é justo ou injusto? Perdoar ou vingar? Além dos personagens que citou, estou gostando muito da atuação de Leandra Leal!Parabéns pelo texto, amiga!

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    1. Fabíola, a série nos enche de perguntas dilemátcas...Leandra está divina e a música de Pablo se encaixa perfeitamente com a personagem. Continuemos atentos!

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  3. Alana, espetacular a sua análise. Faz jus à sua formação acadêmica . Vale a pena ler.

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  4. Alana, como sempre, maravilhosa análise! Durante os capítulos, fico lembrando de um trecho de Agamben, em "O que resta de Auschwitz", no qual ele diz:

    "Quase todas as categorias de que nos servimos em matéria moral ou religiosa são de algum modo contaminadas com o direito: culpa, responsabilidade, inocência, julgamento, absolvição... Isso torna difícil usá-las sem precauções bem específicas. Como os juristas sabem muito bem, acontece que o direito não tende, em última análise, ao estabelecimento da justiça. Nem sequer ao da verdade. Busca unicamente o julgamento."

    É uma série fantástica. A autora, os diretores e atores conseguem nos fazer viver o dilema de pensar nesses conceitos a partir de vários pontos de vista sobre as mesmas histórias. Receita genial! Que venham mais análises suas! Beijo!

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    1. Olá, Marcela, obrigada ela troca de leituras. Não conheço esse, mas a citação cai muito bem com os dramas da série que relativiza os valores morais e nos põe em suspensão. Continuemos em diálogo!

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    2. É um prazer ler seus textos e poder dialogar contigo, Alana!

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  5. Sim, homens e mulheres dos subterrâneos...continuemos e ganhamos uma importante leitora da teledramaturgia brasileira.

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  6. Cabe destacar a destreza da tecelã ao construir seu tapete-análise!

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    1. Obrigada, minha cara, e aos leitores que ajudam a tecer os fios...minha gratidão...

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. A série está fazendo justiça ao trailer que causou tanto alvoroço, e sua leitura é uma lupa imensa em cima dessas histórias. O que também estou achando interessante é a forma inteligente em que as histórias estão se cruzando (acho que os responsáveis pegaram alguma inspiração – inclusive nos temas da vingança, perdão, redenção, acaso etc - em filmes como Crash, 360, Magnólia e das finadas séries Lost e Revenge) Em Lost, por exemplo, as tramas paralelas sempre passavam por um personagem chamado Desmond que vivia em uma espécie de contêiner, o que acontece com o Celso e aquela barraca cheia de zica. O bordel de Leandra Leal (em um dos seus melhores papéis) é muito parecido com o do filme Baixio das Bestas, também ambientado em Pernambuco. É um ótimo trabalho, principalmente na escolha dos atores. Adriana Esteves carrega nas costas a história mais tocante e Debora Bloch, a história mais pesada. A trilha sonora que vai de Fagner a Iggy Pop, de Arcade Fire a Pablo, não pode nem de longe ser ignorara. Excelente.

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  9. Excelentes lembranças, também lembrou-me Babel, outro grande filme. Obrigada pelas colaborações atenciosas. Concordo com a opiniões sobre Leandra, Débora e Adriana, essa última numa interpretação de doer a alma.

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  10. Obrigada pela colaboração atenta com tantas possibilidades de diálogos...lembro-me também de Babel, um grande filme que usa o recurso das tramas cruzadas. Sim, as atrizes estão entregues às personagens, Adriana Esteves, uma MÃE arquetípica...tudo conspira par ser uma das melhores produções da televisão brasileira...

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  11. Ahhhh...fiquei com vontade de assistir! Vou ver se a Globo me permite :)

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  12. Lindas palavras, pró! Estava esperando ser acalentada por elas. Me pego pensando no que Benedito Ruy Barbosa disse: "A fantasia nos magoou". Verdade, a arte antecedeu os fatos imitando a vida antes mesmo do ocorrido , e ficamos todos iguais a Teresa, a mãe, a filha, ao filho, ao irmão... Esperando que Domingos fosse igual a Santo...

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  13. Lindas palavras, pró! Estava esperando ser acalentada por elas. Me pego pensando no que Benedito Ruy Barbosa disse: "A fantasia nos magoou". Verdade, a arte antecedeu os fatos imitando a vida antes mesmo do ocorrido , e ficamos todos iguais a Teresa, a mãe, a filha, ao filho, ao irmão... Esperando que Domingos fosse igual a Santo...

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