Nessas últimas 48 horas o
Brasil está vivendo um luto com a morte prematura e enigmática do ator Domingos
Montagner. Guardada às proporções, tal comoção nos remete às mortes de Airton
Senna, Tancredo Neves ou Princesa Diana. Escolho esses três justamente pelo caráter
simbólico que representavam suas imagens. Não morreram apenas uma pessoa em si,
mas os mitos que elas representavam. O atleta bom moço que nos trazia alegrias
com as bandeiradas do domingo, o político símbolo da democracia e a linda
princesa dos contos de fadas em forma de gente normal.
Parece-me que junto com a
morte de Santo dos Anjos (optarei por chamá-lo pelo personagem e não pelo ator,
quero me iludir que foi ele que morreu), perdemos mais um mito e aquilo que seu
personagem encarnava: o homem decente,
justo, generoso e de beleza viril que nos fazia acompanhar a novela com aquela
empatia e sensação de intimidade com o ator. Não foi a morte em si que nos
espreita em cada segundo que nos chocou, mas a forma assumida pela “Indesejada
das gentes” para abreviar uma história de vida tão interessante que começou nos
humildes picadeiros e com muita estrada e poeira alcançou o papel de principal no horário
nobre.
Para nós estudiosos da
Teoria literária romperam-se as barreiras entre realidade e ficção de forma tão
abrupta que nos deixou atônitos e perturbados com tamanha estranheza. Na terceira
margem do rio, ficou a mocinha de um lado, o redemoinho no meio e o herói morto
ao fundo do rio, com algum suspense e esperança curta de ter sobrevivido para
adensar a crueza da narrativa. Mas não foi invenção do autor, foi o imponderável
da vida que escreveu essa triste cena. É sabido que nas grandes histórias os heróis
não morrem, eles atravessam todas as expiações e chegam ao fim da trama nos
brindando com finais felizes. Ulisses passa cerca de 20 anos na estrada e volta
para sua Penélope.
Esse nosso herói contemporâneo,
encarnado visceralmente pelo ator, não voltará para sua esposa e seus três pequenos
Telêmacos. A res factae atravessou a res ficta com uma força tão bruta que
instalou em nós uma agonia semelhante à perda de um amigo. A morte veloz e
furiosa nos fez perder o chão e o prumo e ficamos por longas horas em silêncio,
sensação própria dos lutos.
A duplicação do drama vivido
pela personagem ( um dos motivos que fizeram a morte do ator em iguais circunstancias
ser tão insólita), morte e ressurreição pelas mãos da mocinha e das várias
místicas presentes na novela, infelizmente não se repetirá com o homem. Ele não
voltará para o emocionante abraço de Bento, nem para o colo de sua mainha
Piedade, e mais triste ainda, não voltará para o abrigo dos seus afetos verdadeiros.
Todavia, como toda a novela é construída de forma simbólica, a ressurreição se
dará pela via alegórica também. Essa personagem e sua morte tão cercada de
mistérios marcarão para sempre a história da teledramaturgia brasileira e a
morte e a morte de Santo dos Anjos permanecerá no nosso imaginário para sempre.
Para encerramos essas incelências para Santo dos Anjos quero lembrar de
Fernando Pessoa. Nas horas brutas da vida, precisamos recorrer aos nossos mitos
internos, a religião ou arte. Em uma cena da novela passada há alguns meses, Maria
Tereza recitou um poema de Álvaro de Campos chamado Adiamento que agora mais força ganha. Não, não adiemos nada. A vida
é hoje e como diz outros versos de Pessoa, através de Ricardo Reis: Não
procures nem creias: tudo é oculto.
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não
digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Sim, o porvir...
Vejo também a morte do São Domingos por uma temperatura do sacrifício que estaria também na esfera do imponderável. Um chamado para a natureza, uma oferenda à preservação do Chico.
ResponderExcluirALANA, texto leve e confortante. Agradecido pelo deleite.
Traduziu bem esse estranhamento que todos nós estamos sentindo diante desta terrível ambiguidade entre vida real e ficção, instâncias que nos acostumamos a confortavelmente separar, e a teorizar sobre. O pacto da crença/ descrença nunca foi tão complicado.
ResponderExcluirSim, Canceriana. Barreiras rasgadas, estranha dor sentimos. Obrigada pela leitura atenta.
ExcluirTraduziu bem esse estranhamento que todos nós estamos sentindo diante desta terrível ambiguidade entre vida real e ficção, instâncias que nos acostumamos a confortavelmente separar, e a teorizar sobre. O pacto da crença/ descrença nunca foi tão complicado.
ResponderExcluirBelíssimo texto.
ResponderExcluirObrigada, continuemos em diálogo.
ExcluirBelíssimo texto.
ResponderExcluirA arte invade a vida causando esse estranhamento do qual as teorias não dão conta. E nossa diante da vida nos leva de volta à arte: a vida não vem com o roteiro pronto
ResponderExcluirSim, Gil, sem roteiros ou bulas...apenas o dia de hoje.
ExcluirAlana, você traduziu o que estamos sentindo de uma maneira lúcida e lírica. A morte, a indesejada das gentes nunca nos pega preparados, mas, em alguns casos, como o de 'Santo dos Anjos', nos deixa perplexos com a proximidade da finitude tão palpável...
ResponderExcluirObrigada, cara colega, nunca senti a morte de alguém "estranho" assim...nos põe a meditar muito.
ResponderExcluirLindo!! Parabéns prima!! Mesmo com pouco entendimento para linguagem literária, adorei, foi emocionante "viajar" em suas particularidades, em seu texto e em Adiamento. Gratificante! Orgulho de vc! ;)
ResponderExcluirObrigada, prima, a arte e a dor são linguagens universais, é só sentir...
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirProzinha linda, estava dando aula ao receber a notícia e, inevitavelmente, fiquei desconsertada. Vc e seu blog foram os primeiros a serem lembrados.
ResponderExcluirUma dor no peito, um nó na garganta. A expectativa de continuar vendo a novela para fazer de conta que ele ainda está vivo junto aos seus ideias que nos enchiam de força atrelada a uma ternura e esperança de dias melhores. Mergulhados em uma profunda introspecção perguntamos porque tinha que ser assim. Penso que talvez (se era de fato a hora dele partir) a vida escolheu uma maneira indiscutível de torná-lo eterno na memória dos amantes de sua pessoa e da teledramaturgia.
Santo dos Anjos, Domingos Montagner e Velho Chico é e será uma tríade indissociável.
Aproveito para te agradecer por despertar em muitos leitores, alunos e demais pessoas o desejo de acompanhar essa tão bela trama, que muitas vezes lavou a minha alma em catarse de lágrimas. E era tão gostoso tudo isso...
Gratidão, mais uma vez, por trazer a nós suas múltiplas leituras, as ricas relações de intertextualidade nem sempre percebidas por nós e que atribuem valor e significação as telenovelas.
Um abraço afetuoso para a senhora, como o de Dona Piedade, de uma admiradora de Santo dos Anjos,
Dayana Barbosa.
Obrigada, seu comentário me inunda de sentimentos. Parece estranho, mas senti essa morte como a de um amigo. E outros amigos próximos agiram comigo como se assim o fosse, preocupados com mina reação. Obrigada mais uma vez, sigamos...depois te conto pessoalmente alguns detalhes desse "luto". Vi seu comentário anterior, carinho é sempre bom..
ExcluirDesde o momento em que, me preparando para ir ao lançamento dos livros de Ruy Espinheira e Carlos Barbosa, minha irmã entrou no quarto e me disse o que tinha acabado de acontecer, não sou mais a mesma. Não assisti a nenhum noticiário, e tudo dói. Não sei se terei condições de continuar a ver a novela - que só assistia por conta dele.
ResponderExcluirCaríssima, tive todas a sensações de um luto real. Nunca senti isso antes por um "estranho". Obrigada pelo carinho!
ExcluirObrigada a você, amiga, por essa sensibilidade enorme.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirComovente, Alana. Como você sugere no texto, não podemos deixar a vida para amanhã, pois sua irmã, a morte, vem sem dar aviso, sem lógica alguma, lembrar, com sua força, a força da vida. E por isso, também, Santo dos Anjos (e é mesmo Santo, que continua - e continuará - vivo, mesmo depois da partida de Domingos) nos comove tanto: ator e personagem se amalgamaram de tal forma que, um ou outro, plenos de vida são, para nós, o mesmo herói. E já que perder um herói é sempre perder um pouco da esperança, ficamos com Santo. Como se a ficção fosse maior que a vida. No final das contas, talvez seja mesmo: sem esta, como suportar o terrível peso daquela?
ResponderExcluirAmigo, seu comentário me põe a chorar. Vc é uma das pessoas mais sensíveis que conheço, embora não chore(rss) como eu...Esse amálgama de vida de sangue com vida de papel nos desafiou além do que podíamos com esse luto estranho por alguém que não conhecemos. de mãos dadas, nosso tempo é hoje!
ExcluirMuito bom seu texto. Além de dizer o que muitos de nós gostaríamos, nos faz também refletir sobre a efemeridade da vida.
ResponderExcluirObrigada, continuemos sonhadores, à parte isso.
ExcluirAlana, ainda em luto por nosso eterno Coronel Herculano, de Cordel Encantado...foi nessa novela que conheci o trabalho do ator Domingos Montagner e, como muitos brasileiros, me apaixonei. Procurando não mais pensar no mistério que envolve a forma como ele se foi... Obrigada por nos brindar com um pouco de alento na sua análise e nos lembrar desta preciosa lição: a vida é hoje, tudo é pra agora, principalmente o amor, a paz, o estar com os nossos. Que Santo viva para sempre em nossos corações.
ResponderExcluirObrigada, caríssima, por isso devemos sempre e cada vez mais estar entre os nossos.
ExcluirAlana, você soube traduzir em seu texto profundo e ao mesmo tempo dosado de leveza as sensações e sentimentos que todos nós enquanto telespectadores íntimos de toda a trama, estamos sentindo com essa perda do ator versus personagem que perpassa à fatalidade da morte um certo teor místico conduzindo-o ao mito, inclusive.
ResponderExcluirObrigada, leitor, mais uma vez vamos a Pessoa...O mito é o nada que é tudo...o mistério dessa morte nos pôs em suspensão.
ExcluirAlana, você soube traduzir em seu texto profundo e ao mesmo tempo dosado de leveza as sensações e sentimentos que todos nós enquanto telespectadores íntimos de toda a trama, estamos sentindo com essa perda do ator versus personagem que perpassa à fatalidade da morte um certo teor místico conduzindo-o ao mito, inclusive.
ResponderExcluirSem dúvidas, o melhor texto que escreveu! Sem dúvidas!
ResponderExcluirObrigada, Carolina, e foi muito doloroso escrever, mas precisava para elaborar o luto por esse estranho tão próximo de nós.
ExcluirSem dúvidas, o melhor texto que escreveu! Sem dúvidas!
ResponderExcluirBelo texto. Esclarece e emociona. Parabéns, Alana!
ResponderExcluirObrigada, João, há sempre um rio afogando em nós...
ResponderExcluirEsclarecedor...
ResponderExcluirExcelente análise e brilhante as expressões latinas!
ResponderExcluirCarpe diem, sempre!
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