Machado de Assis, escritor renomado
pela qualidade literária dos seus romances, entre eles os inesquecíveis Memórias
Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro, também se destacou na
produção de contos imperdíveis que já se consagraram pela presença constante
nas mais diversas antologias do gênero, textos como O Alienista, Missa
do Galo ou A Cartomante povoam a memória dos leitores
brasileiros que já se aventuraram por suas páginas.
Mas, a propósito da ocasião da
visita em nossa cidade do espetáculo Vixe Maria Deus e o Diabo na
Bahia, de Claudio Simões, nos remetemos de imediato a um conto não muito
conhecido do nosso bruxo do Cosme Velho, mas sem dúvida um dos melhores, A
Igreja do Diabo, que faz parte do volume de contos Histórias sem Data.
O argumento do espetáculo,
espetáculo com todas as letras pela qualidade inegável da produção, é o mesmo
do conto machadiano: Eis que cansado da monotonia do inferno, o Diabo resolve
fundar sua própria igreja para competir com a igreja de Deus, e por ser um
concorrente honesto, avisa ao Todo Poderoso do seu intento.
Daí em diante começa o processo de
criação/reinvenção da peça baiana, pois
é justamente em Salvador que o Demo vem fundar sua Infernal Sé, obviamente no
período que antecede o Carnaval e há uma festa todo dia na Bahia, ou seja,
Salvador está do jeito que o Diabo gosta. E Deus, diante de tal ameaça, é
obrigado a aterrissar por aqui também.
Conflito estabelecido, o tacho do
dendê começa a ferver, numa deliciosa mariscada onde tem de tudo: Festa de
Santa Bárbara/Iansã, procissão do Senhor do Bomfim com direito a citação do
Senador como membro do cortejo, outro patrimônio cultural baiano, Festa de
Iemanjá, Feira de São Joaquim, com todas as suas cores e sabores, do cesto de
umbu a taboca, dos vendedores de ervas ao picolé Capelinha (nada foi
esquecido!) nessa formidável mistura, temperada pelo legítimo baianês.
E por falar em baianês, na moral e
sem exagero, meu rei, um dos pontos altos do espetáculo é justamente, a
linguagem, a inserção da “língua baiana” com todo seu charme e gingado das
ruas, é hilário ver Deus e Diabo falando baianês, é um tal de “Tome”, “Se
lascou”, “Receba”, entre outras pérolas da língua gostosa do povo como dizia
Manuel Bandeira.
Voltando ao conflito principal da
trama, Deus e Diabo, na sua eterna peleja, visitam os supostos lugares onde
estariam seus fiéis, entre eles um terreiro de candomblé e uma igreja
evangélica, passagens que despertam risos soltos no expectador mais casmurro
que por ali estivesse. O cotidiano das duas religiões é mostrado em forma de
galhofa (para usar um termo machadiano), mas a profundidade da reflexão que
dali podemos extrair é uma espetada nas mentes adormecidas. É o velho Ridendo
Castigat Morus, por ali disfarçado de canga e protetor solar.
Outro elemento notável é a
musicalidade do espetáculo, sem nem uma nota a mais ou acorde a menos, a música baiana imprime um
ritmo forte e sedutor durante as duas horas de palco, aliás, ornado por um
belíssimo cenário e adequado figurino. Os hits dos carnavais baianos vão se
enfileirando numa harmonia de arranjos de dar inveja a qualquer Escola de Samba
do primeiro grupo.
Enfim o público de Feira de Santana
que prestigiou em massa o evento, avis raras em nossa cidade, saiu com a
alma lavada, gratificado por tão nobre diversão.
Ah!...Sobre o conflito eterno entre
Deus e o Diabo, vai continuar ad infinitum, como forças que se
retroalimentam. O bem só existe porque sua face oposta o completa e vice-versa
e versa-vice. É o eterno dualismo humano, trabalhado na peça na perspectiva
regional, que como nas grandes obras, leva ao universal.
Terminemos como o próprio Machado
de Assis termina seu conto: Que queres tu? É a eterna contradição humana. De
fato uma história sem data.
Ah! Que loucura essa mistura, Deus
no coração e o Diabo no quadril.
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